terça-feira, janeiro 31, 2006

Oração nº 2


Creio no fim do universo
E no Reino de Jesus.
Acredito na bondade
E nas boas intenções.
Creio no matrimónio,
No doce lar, na família.
Acredito nos enigmas
E nos mistérios do Além.
Creio na honestidade,
Na justiça vencedora.
Acredito na amizade
Eterna como o amor.
E na perfeição das coisas...
E na razão da existência...
E amo todas as artes,
Todas as sensibilidades,
Todos os corações...
Creio no início do mundo,
Em Deus imenso a explodir
Em todas as direcções...
Pedra, raio, gota, vento,
Tudo bem ordenado.
Só não contes a ninguém,
Como eu não conto a ninguém:
É fácil estar-se enganado...



Imagem de www.dulux.co.za.

Poema de Joaquim Camarinha

Elegia nº 2


Os cemitérios cobrem-se, entre mármores gelados,
Com tapetes desmaiados de flores desiludidas,
Estátuas trágicas de olhares brancos
E lágrimas dissolvidas na terra, porque tudo é terra.
Nos cemitérios repousam os sonhos derrotados
Em batalhas inglórias, e os segredos silenciados,
Tão inúteis, que nunca ninguém desvelará.
Sob céus azuis, tão tristes, tão infinitos,
O vento varre as ervas e as folhas secas
Porque cada instante varre todos os instantes,
A própria terra e o divino nos céus,
A moral, os costumes e as civilizações,
As taças de champanhe, casamentos, baptizados e funerais...
Nada escapa à imensa vassoura do vento
E só a arrumação no cosmos se revela permanente.



Imagem de http://static.flickr.com.

Poema de Joaquim Camarinha

sábado, janeiro 28, 2006

Flores de plástico

Flores de plástico de várias cores
Que cresciam ordenadamente nas salas de estar
E enfeitavam escritórios tão atarefados!...
Flores de plástico de várias formas,
Teclar repetido de máquinas de escrever,
Flores de aromas imaginários,
Flores nas infâncias que o tempo comeu...
Quem vos chorou a morte inescapável?
Quem vos levou no cortejo final?
O sol a entrar por frinchas nas persianas,
A luz a traçar geometrias no chão,
Encandeando olhos que já se fecharam,
Fotografias a cores velhas, desbotadas,
Flores de plástico, esborratadas...
Flores de plástico de várias cores,
Versos sem rima, ritmo e moral,
Flores esquecidas, flores carcomidas,
Futuro passado, presente irreal!



Imagem de www.spacetoday.org.

Poema de Joaquim Camarinha


sexta-feira, janeiro 27, 2006

Jazz Funeral


Se eu me acabar
Como o dia acaba
Para recomeçar
Na terra do nada

Deixem comentários
Nos meus blogs de ontem,
Rasguem-me os diários,
Fumem, bebam, cantem!

Vejam-me no mar
E no céu tranquilo,
Que eu quero acabar
Com humor e estilo!

Cubram-se de cores
Chocantes, garridas,
E façam amores
Como quem faz vidas!

Soltem gargalhadas
Loucas e perdidas!
Desfilem paradas
Pelas avenidas!

Lágrimas não quero.
Cinzentas, pesadas
Águas do desterro...
Soltem gargalhadas!

Eu nada lamento...
Só o que não fiz.
Vou além do tempo,
Fora da matriz...

Se eu me terminar
Como um meteoro,
Deixem ressoar
Um espanto sonoro!

Vejam-me sorrir
Face à adversidade,
Que eu quero partir
Com personalidade!



Imagem de www.jazzmusic.net.

Poema de Joaquim Camarinha

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Sol de Janeiro

Enfrentando dinossauros e areias movediças
Por entre árvores remotas e cascatas assassinas
Na terra do faz-de-conta, na terra do nunca mais,
Ao sol do mês de Janeiro, tépido e almofadado...
Gosto desse sol primevo, entre os primeiros do cosmos,
Entre as poeiras divinas ainda por assentar.
A verdade nos sorrisos, nos beijos, no amuar,
A vontade de viver, o desejo de gritar.
Gosto dessa cor primária que inunda a tela do dia
E não se esconde em museus, nem nos exige bilhetes
Para que possamos entrar...
Ao sol do mês de Janeiro, tépido e almofadado,
Somos um videojogo pela inocência programado.



Imagem de www.switalski.net.

Poema de Joaquim Camarinha

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Dai-me o piar do cuco

Dai-me o piar do cuco e altas torres de alta tensão!
Rodeiam-nos montanhas, pinheirais, o eco,
A brisa a roçagar nas agulhas e no mato,
E a tarde de Verão a pino...
Como revibra o sol e sou de novo menino!
Dai-me o piar do cuco, de um cuco livre no céu!
Passaram os pinhais,
Passaram as pessoas,
Passaram as casas,
Passaram as ideias,
Passaram as viagens,
Toda a terra se transformou, carnívora geologia mental!
A vida voou...
Dai-me o piar do cuco que um dia me chamou!...



Imagem de www.gaucinet.com.

Poema de Joaquim Camarinha

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Fumo

E eis que me deu para escrever um soneto! O Eu disse-me: "Tem calma, não é a tua vocação, deixa essas coisas para mim..." E eu limitei-me a responder-lhe: "Pois, mas também já te li muita coisa que de soneto não tem nada. Nunca me pareceu que fosses um sonetista de vocação". Bom, e assim ficámos. É provável que haja quem ache que se trata de uma forma ultrapassada, que já muito melhores poetas compuseram sonetos e que não há nada de novo a acrescentar... Passa-lhes o fulcro da questão totalmente ao lado. Quem segue modas é a imprensa e o poeta escreve o que quiser, inclusive porque não tem que cumprir contratos com nenhuma multinacional. Se me apetecer, ainda sou capaz de criar a cantiga, o vilancete, a exparsa ou a sextina ocasionais...



Vêde o fumo lento da cigarrilha,
Sublimando o ar, mastigando a luz,
Chuva divina, licor de alcaçuz,
Vento solar, do meu navio a quilha!

Vêde como ascende, só mas feliz...
Nada deve ao mundo, a mim ou a ti.
Todo sugestão, é um deus que ri,
Trova do silêncio, fuga e raiz.

Paralisa o tempo, o gesto, o olhar
De quem fuma sonhos soltos em tragos
Como almas libertas a ressoar

E a dança de mares, rios e lagos
Que inventa o xamã a revoltear
É o bem e o mal dos poetas vagos.



Imagem de www.wendydent.com.

Poema de Joaquim Camarinha

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Sentou-se à minha frente a poeta

Chegou e sentou-se à minha frente a poetisa,
Poeta, aliás, palavra da moda,
A que junta versos, em todo o caso,
E soma uma longa obra impublicada
Em que fala de emoções, sobretudo de emoções...
E eu, as emoções, sobretudo as emoções,
Transformo-as em gestos, beijos, abraços,
Em palavras para os meus eleitos,
Mas ditas, faladas,
Porque quem lê poesia, pouco lhe há-de interessar
Se o sujeito-poético ama ou inventa sentimentos,
Se odeia ou dá sangue e se voluntaria.
Quem lê, quer ler-se inteiro no poema,
Quer lá saber do grito escrito, da palavra alheia!
O poeta, a poeta, são, muito provavelmente
Poços de vícios e escuros segredos,
A quem o diabo empresta o mistério da expressão
E é o exprimirmo-nos por empréstimo que realmente conta...
Uma metáfora, uma aliteração, uma anáfora, uma comparação,
O entendermo-nos a nós no entendimento alheio.
Quem lê quer ler poesia como tarot...
E há, se calhar, poesia até no aldrabão
Que, tão misticamente, nos garante conseguir
Escrever os poemas de vida que o mundo nos nega.



Imagem de http://static.flickr.com.

Poema de Joaquim Camarinha

Dança dos sentidos

Vejo tudo amalgamado...
Os ritmos a serpentear nas colunas de som do café,
O assoar rápido, expressivo, da rapariga na mesa do lado,
As gargalhadas onduladas no grupo da frente,
A percussão moderna das colheres contra as chávenas,
O voltar de páginas cortado pelo toque do telemóvel,
"Ah, olá, és tu", vejo tudo amalgamado!
E a amálgama discreta também...
O deslizar da língua que humedece lábios,
O bater das pálpebras, rápido, nervoso,
Os dedos enrolando cabelos como cordas,
A caneta raspando notas tão importantes,
As entranhas cavas de alguém em movimento...
Vejo tudo amalgamado.
E um dia, alguém dirá, ou diria, por assim ver,
Que sofri de um desequilíbrio exótico dos sentidos
Ou que tomei alucinogénios às escondidas...



Imagem de www.deviantart.com (photoshop de Veselin).

Poema de Joaquim Camarinha

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Fantasmas

É à primeira hora da manhã, errante e sonolenta,
Das longas linhas metálicas de escravos em correntes lentas,
Quando o orvalho frio imita o céu vácuo na terra vazia
E o silêncio se transforma em silêncios e em ruídos depois,
À hora do terror e pânico invertidos, da aceitação,
Que todos os fantasmas se vêm aconchegar na minha cama imensa,
Desfeita de sonhos confusos da noite serena...
Eles vivem em todas as não-vozes,
Nos não-risos,
Nos não-protestos atrás das pesadas portas
Que me guardam e protegem de vidas passadas
E de traumas kármicos amontoados na distância de mim mesmo.
É uma hora triste, um tempo fora do tempo,
De movimento tetraplégico numa bolha de oxigénio,
Essa hora dos fantasmas, tão vivos, flutuantes e apertados,
Milhões de vidas cansadas e entregues à aceitação...
Por isso, eu amo a tarde com todos os seus brilhos óbvios,
O sol queimador de neurónios, o amigo sol narcótico...
Por isso, eu amo ainda mais a noite, quando os outros dormem indefesos
E os fantasmas despertam e se humanizam...
Juntos inventamos poemas, filosofias e brincadeiras,
Juntos rimos, tão diversos nas nossas igualdades,
Juntos balançamos ao ritmo implacável da existência,
Sem danças absurdas de esqueletos em cemitérios neogóticos.



Imagem de http://oswaldism.de.

Poema de Joaquim Camarinha

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Sintético

- É a vida...
- Sim...
- Mandamos vir mais uma garrafa?
- Pode ser.
- Olhe, por favor!...



Imagem de http://ponomarov.com (de Vladislav Ponomarov).

Poema de Joaquim Camarinha

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Caixa negra


"Toda a gente tem a sua caixa negra", alguém me disse certa vez...
Quem mo disse? Alguém. As pessoas passam à velocidade da luz
E o que fica são partículas de palavras, misturadas com imagens e odores.
Tudo confundido, uma pessoa transforma-se em milhares
E é essa a esquizofrenia normal do mundo.
A minha caixa negra já mudou tanto de cor,
Tornou-se pequenina, ganhou tonalidades quentes,
Chega a parecer uma camisa havaiana num cartão postal com o mar ao fundo
E só se veste de negro, ocasionalmente, por questão de moda e feeling superficial.
Não sou um avião e voo menos do que já voei...
Excito-me menos mas sorrio mais
E tudo é natural como as ideias que se sucedem
Numa colagem excêntrica de filmes diferentes
Que ninguém entenderá, mas poderá receber louvores da crítica.
Viva a crítica, portanto! Viva Andy Warhol e só não quero passear com guarda-costas!
Quanto à minha caixa negra, a que agora é tão vivaz,
Transformou-se numa daquelas caixinhas de música da infância
Ao som das quais vos convido a dançar a noite inteira.
Caixas negras? Aviões? Têm o valor das citações.



Imagem de www.treasuresworldwide.com.

Poema de Joaquim Camarinha

quarta-feira, janeiro 04, 2006

O tamanho das coisas

São as pequenas coisas que fazem as grandes,
Assim nos diz a sabedoria popular.
E se é popular, tem que ser de uma maioria.
E se é da maioria, tem que ter razão.
Isso faz-me pensar nos grandes dinossauros,
Talvez altos como prédios de cinquenta andares,
Que engoliam coisas pequenas para se fazerem...
Ou, por ricochete, na multidão de seres ínfimos
Que vivem em recantos profundos da Amazónia
E igualmente se alimentam e disso saberão os ornitólogos...
Todos se extinguem, de todos os tamanhos,
E um dia paleontólogos e ornitólogos não significarão um quark.
Será que universos maiores engolem universos mais pequenos?
Extinguir-se-ão assim deuses maiores e menores,
Uma vela que se apaga, um pensamento que se esquece?
Não tenho respostas, mas também estou em vias de extinção
E não encontro motivo melhor para engolir coisas como eu:
Cigarros, copos, cozinhados e ideias confusas em verso irregular.



Imagem de http://ninjadodo.zeepost.nl.

Poema de Joaquim Camarinha

terça-feira, janeiro 03, 2006

Blá-blá-blá

Todos se querem fazer ouvir...
Os bebés, que guincham a plenos pulmões.
Os outros, que se repetem,
Repetem a mesma frase sem cessar,
Até que alguém os escute,
Finja escutar
Ou mande calar.
Os animais também se querem fazer ouvir...
Lambem, mordem, arranham e abanam a cauda.
Pelo menos, satisfazem-se com uma festa distraída...
O universo inteiro não pára de falar...
Está presente e faz-se ouvir
Mas não fala língua de gente
E mesmo as línguas de gente são sempre pessoais.
O telefone toca... Quem se quer fazer ouvir?
Só o silêncio não se ouve
Por não passar de uma noção abstracta.
É um cosmos cheio de ruído
E vale-nos somente, no meio das ondas sonoras em colisão,
O som em cascata do vinho lançando-se no fundo do copo.



Imagem de http://derjan.de.

Poema de Joaquim Camarinha

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Quem é Joaquim Camarinha? (3)



Estava eu, hoje, sossegadamente a tomar o café que sempre se me segue ao jantar, quando me surge o Eu. Parecia meio tenso, meio provocador... Por amizade, deixei-o sentar-se na minha mesa e fomos conversando, conversando sobre banalidades porque, no fim, tudo são banalidades. Entretanto, ele ia tomando notas febrilmente. Ainda tentei espreitar mas, de cada vez que o fazia, puxava do papel e tornava-se mais misterioso. Quando nos despedimos, entregou-me duas folhas cheias de gatafunhos e disse-me: Toma. Mais uma entrevista para publicares lá no teu blog! Escusado será dizer que o Eu sabe coisas de mim e que não pretendo sujeitar-me a chantagens. Por outro lado, sou pacífico... Não me vai na alma assassinar o Eu. Aqui vai, então, o resultado da dita "entrevista", tanto quanto eu lhe consegui decifrar a escrita quase hieroglífica. Para os mais curiosos. Por mim, vou-me deitar...




Eu - Vejo que persistes na não-rima, na não-métrica, num ritmo, pelo menos, subtil... Porquê? Não consegues escrever poesia mais formal? Será preguiça?
Joaquim Camarinha - Começas bem o ano...
Eu - Talvez ande um pouco tenso...
JC - Tenso? Porquê?
Eu - Que é que achas? Escrevi poemas praticamente a vida inteira. Como não sou membro da APE, estou pouquíssimo editado. Entretanto, andas por cá a angariar leitores e a tomar o meu lugar...
JC - Faz um blog.
Eu - Não.
JC - Não... Porque não?
Eu - Não é coisa que me apeteça.
JC - Um blog é uma boa forma de comunicar.
Eu - Escreves directamente no blog?
JC - Não. Gosto do papel.
Eu - Cheira a velho. És mais velho do que eu!
JC - Sinto-me como se tivesse vivido mil anos... Bom, não é o que está no perfil. Gosto de papel novo. E tu, escreves directamente no computador?
Eu - Por acaso, escrevo. Sempre que calha. Tu não, portanto...
JC - Trago sempre um par de folhas comigo. Quando algo me atrai a atenção, aproveito e escrevo. Às vezes também tenho que escrever num guardanapo ou numa toalha de papel...
Eu - Não te chateias se te disser que pareces uma espécie de paparazzo?
JC - Conversa. Tento ser um fotógrafo sério e prefiro o cidadão comum às celebridades. É verdade que também não me cruzo com elas... Mas gosto de captar as situações e de as trabalhar na minha câmara escura.
Eu - Suponho que escrevas depressa...
JC - Porquê depressa?
Eu - Pouca forma, muita liberdade... Pode até haver quem não considere o que fazes poesia...
JC - É-me indiferente. E a liberdade é relativa, trabalho sempre os poemas em cima dos poemas. Faço exactamente o que quero e acredito no que faço. De tal forma que tenho, ultimamente, escrito toda a poesia que, de outro modo, te caberia a ti escrever. À minha maneira, claro está.
Eu - Certo. Mas insisto: por vezes, parece-me que as palavras te estão mesmo a exigir uma rima e que a negas propositadamente.
JC - Pois nego. Se assim não fosse, não seria Joaquim Camarinha.
Eu - O Joaquim Camarinha é um iconoclasta das letras?
JC - Não. O Joaquim Camarinha não sacrifica a expressão à forma.
Eu - Mas a forma e a expressão podem, no meu ponto de vista, complementar-se...
JC - Sei que sim. Mas deixo essa complementaridade para ti, não te vou roubar tudo!
Eu - Parece simpático... É uma forma de não nos confundirmos. No entanto, num dos teus últimos poemas encontrei um soneto, inclusive com rima, se bem que algo anárquico. Estarás a sofrer uma mudança?
JC - Não, não. Apeteceu-me escrevê-lo assim, é tudo. Apesar de fugir à rima, não pretendo fugir de mim mesmo em nome de uma forma pré-determinada. Seria artificial demais...
Eu - Confessaste gostar de escrever em papel... Guardas os teus papéis em algum baú?
JC - Essa tem graça! O Pessoa fez precisamente isso e o resultado foi terem-lhe publicado muito verso que não creio que alguma vez ele tivesse publicado.
Eu - Não podes falar por ele.
JC - Pois não. Falo sempre por mim. Nem sequer dou conselhos... Só sugestões.
Eu - Que sugestão me darias?
JC - Metafísica ou realista?
Eu - Metarealista, se fazes o favor...
JC - Pois bem... Nunca te afastes demasiadamente de mim. Moderas-me. Gosto que as pessoas entendam o que escrevo. Não acredito em supostos poemas para cuja compreensão se torna necessário pesquisar em dicionários de símbolos o significado oculto de cada palavra. Por outro lado, não acredito na cisão absoluta de personalidades. Os esquizofrénicos criativos são um produto de Hollywood!
Eu - Ah, porque tu és extremamente criativo!...
JC - Não mais do que tu. Espero ser um poeta de emoções...
Eu - Mas a realidade, é pelo menos assim que te leio, é que muito do que escreves pressupõe um conjunto de referências culturais. Não correrás o risco de assim te tornares mais elitista e menos emocional?
JC - Antes de mais, as elites têm emoções. Como todos. Falo sobretudo das elites culturais, mas nenhuma elite é composta por extraterrestres. Mas as elites só existem como elites de facto porque as populações são propositadamente deseducadas e porque cultivam orgulhosamente a ignorância.
Eu - Parece-me um bocado negro...
JC - Mas sabes que é verdade. Sabes que o poeta escreve sempre para um público limitado... Mas gostava de ser editado em papel...
Eu - Lá estás tu com o papel! E é assim tão complicado?
JC - Nem tanto, se houver qualidade. Muito menos se houver conhecimentos.
Eu - A qualidade por si só é ou não uma miragem?
JC - Não. Mas todos sabemos como funcionam as nossas editoras... Se se dignam publicar-te, ou te propõem a compra de um número elevado de exemplares ou te pedem mesmo cash.
Eu - Parece uma boa forma de gerir empresas... O risco torna-se nulo.
JC - Claro que sim. E é também uma boa forma de deixar muitos espíritos criativos no desconhecimento total. Quem dispõe de capital, edita. Quem tem contas a pagar, espera que um dia os seus descendentes, para quem os tem, tenham a sensibilidade de lhe guardar a obra. Deves saber disso, não?
Eu - Sei. Globalmente, o empresariado português é uma farsa.
JC - O empresariado, o operariado, os que usam fato e gravata... Mas não é isso que vai causar o fim do mundo como o conhecemos... Sobretudo como o conhecemos!
Eu - Pois não.
JC - O mundo não pára. Anda, pago-te um copo e podemos falar de coisas menos sérias!
Eu - Não posso. Tenho que preparar trabalho para amanhã... Senão, não pago as contas. E deixo de te poder pagar o blog.
JC - És tu quem me paga o blog?



Declarações recolhidas em 2 de Janeiro de 2006. Foto do Eu.

Instantâneo

Dá-me o teu olhar surpreendido,
Assim, praticamente improvisado,
Os olhos num o de muda exclamação,
Os lábios discretamente ascendentes ao canto
E bamboleia levemente as ancas por instinto
Quando te olho, por acaso, quando passas.
Porque passas e eu estou parado...
E quando te olho, assim tão por acaso,
Ou por cultura, hábito e imagem
(Esse hábito que sublinha as feições dos feios e dos bonitos)
E quando te arrepias por dentro, surpreendida,
Chamas-me bonito e tornas-te bonita...
Mais do que bonita: gira.
Girando, quem quer que sejas e onde quer que vás.



Imagem de www.cinemasirens.com.

Poema de Joaquim Camarinha

domingo, janeiro 01, 2006

A dança

Vejo tudo amalgamado...
Nos corpos que se movem como sombras,
Todas as vidas e todas as mortes,
Todos desfeitos em sombras,
As sombras desfeitas em todos.
Sinto-me como se tivesse vivido mil anos
(E tenho a sensação de já ter lido isto algures)...
Reconheço todos os sons de todos os tempos
E todos os reflexos no meu copo de vinho
E as tonalidades todas das luzes, vibrando
E transportando-me simultaneamente ao passado e ao futuro.
Vejo tudo amalgamado...
Dêem-me já olhos novos,
Pulmões, fígado, coração,
Sobretudo o coração...
O vinho entornou-se e parece que é alegria,
Fantasmas deslizam copos sobre a superfície tinta,
O papel tingiu-se nas bordas
Mas a esferográfica persiste, a escrita automática...
Sinto-me como se tivesse vivido mil anos!
Quero dormir,
Dormir,
Dormir,
E nem mil anos me bastarão...



Imagem de www.3rdstreetgallery.com (tela de Katherine Kurtz).

Poema de Joaquim Camarinha

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