segunda-feira, janeiro 02, 2006

Quem é Joaquim Camarinha? (3)



Estava eu, hoje, sossegadamente a tomar o café que sempre se me segue ao jantar, quando me surge o Eu. Parecia meio tenso, meio provocador... Por amizade, deixei-o sentar-se na minha mesa e fomos conversando, conversando sobre banalidades porque, no fim, tudo são banalidades. Entretanto, ele ia tomando notas febrilmente. Ainda tentei espreitar mas, de cada vez que o fazia, puxava do papel e tornava-se mais misterioso. Quando nos despedimos, entregou-me duas folhas cheias de gatafunhos e disse-me: Toma. Mais uma entrevista para publicares lá no teu blog! Escusado será dizer que o Eu sabe coisas de mim e que não pretendo sujeitar-me a chantagens. Por outro lado, sou pacífico... Não me vai na alma assassinar o Eu. Aqui vai, então, o resultado da dita "entrevista", tanto quanto eu lhe consegui decifrar a escrita quase hieroglífica. Para os mais curiosos. Por mim, vou-me deitar...




Eu - Vejo que persistes na não-rima, na não-métrica, num ritmo, pelo menos, subtil... Porquê? Não consegues escrever poesia mais formal? Será preguiça?
Joaquim Camarinha - Começas bem o ano...
Eu - Talvez ande um pouco tenso...
JC - Tenso? Porquê?
Eu - Que é que achas? Escrevi poemas praticamente a vida inteira. Como não sou membro da APE, estou pouquíssimo editado. Entretanto, andas por cá a angariar leitores e a tomar o meu lugar...
JC - Faz um blog.
Eu - Não.
JC - Não... Porque não?
Eu - Não é coisa que me apeteça.
JC - Um blog é uma boa forma de comunicar.
Eu - Escreves directamente no blog?
JC - Não. Gosto do papel.
Eu - Cheira a velho. És mais velho do que eu!
JC - Sinto-me como se tivesse vivido mil anos... Bom, não é o que está no perfil. Gosto de papel novo. E tu, escreves directamente no computador?
Eu - Por acaso, escrevo. Sempre que calha. Tu não, portanto...
JC - Trago sempre um par de folhas comigo. Quando algo me atrai a atenção, aproveito e escrevo. Às vezes também tenho que escrever num guardanapo ou numa toalha de papel...
Eu - Não te chateias se te disser que pareces uma espécie de paparazzo?
JC - Conversa. Tento ser um fotógrafo sério e prefiro o cidadão comum às celebridades. É verdade que também não me cruzo com elas... Mas gosto de captar as situações e de as trabalhar na minha câmara escura.
Eu - Suponho que escrevas depressa...
JC - Porquê depressa?
Eu - Pouca forma, muita liberdade... Pode até haver quem não considere o que fazes poesia...
JC - É-me indiferente. E a liberdade é relativa, trabalho sempre os poemas em cima dos poemas. Faço exactamente o que quero e acredito no que faço. De tal forma que tenho, ultimamente, escrito toda a poesia que, de outro modo, te caberia a ti escrever. À minha maneira, claro está.
Eu - Certo. Mas insisto: por vezes, parece-me que as palavras te estão mesmo a exigir uma rima e que a negas propositadamente.
JC - Pois nego. Se assim não fosse, não seria Joaquim Camarinha.
Eu - O Joaquim Camarinha é um iconoclasta das letras?
JC - Não. O Joaquim Camarinha não sacrifica a expressão à forma.
Eu - Mas a forma e a expressão podem, no meu ponto de vista, complementar-se...
JC - Sei que sim. Mas deixo essa complementaridade para ti, não te vou roubar tudo!
Eu - Parece simpático... É uma forma de não nos confundirmos. No entanto, num dos teus últimos poemas encontrei um soneto, inclusive com rima, se bem que algo anárquico. Estarás a sofrer uma mudança?
JC - Não, não. Apeteceu-me escrevê-lo assim, é tudo. Apesar de fugir à rima, não pretendo fugir de mim mesmo em nome de uma forma pré-determinada. Seria artificial demais...
Eu - Confessaste gostar de escrever em papel... Guardas os teus papéis em algum baú?
JC - Essa tem graça! O Pessoa fez precisamente isso e o resultado foi terem-lhe publicado muito verso que não creio que alguma vez ele tivesse publicado.
Eu - Não podes falar por ele.
JC - Pois não. Falo sempre por mim. Nem sequer dou conselhos... Só sugestões.
Eu - Que sugestão me darias?
JC - Metafísica ou realista?
Eu - Metarealista, se fazes o favor...
JC - Pois bem... Nunca te afastes demasiadamente de mim. Moderas-me. Gosto que as pessoas entendam o que escrevo. Não acredito em supostos poemas para cuja compreensão se torna necessário pesquisar em dicionários de símbolos o significado oculto de cada palavra. Por outro lado, não acredito na cisão absoluta de personalidades. Os esquizofrénicos criativos são um produto de Hollywood!
Eu - Ah, porque tu és extremamente criativo!...
JC - Não mais do que tu. Espero ser um poeta de emoções...
Eu - Mas a realidade, é pelo menos assim que te leio, é que muito do que escreves pressupõe um conjunto de referências culturais. Não correrás o risco de assim te tornares mais elitista e menos emocional?
JC - Antes de mais, as elites têm emoções. Como todos. Falo sobretudo das elites culturais, mas nenhuma elite é composta por extraterrestres. Mas as elites só existem como elites de facto porque as populações são propositadamente deseducadas e porque cultivam orgulhosamente a ignorância.
Eu - Parece-me um bocado negro...
JC - Mas sabes que é verdade. Sabes que o poeta escreve sempre para um público limitado... Mas gostava de ser editado em papel...
Eu - Lá estás tu com o papel! E é assim tão complicado?
JC - Nem tanto, se houver qualidade. Muito menos se houver conhecimentos.
Eu - A qualidade por si só é ou não uma miragem?
JC - Não. Mas todos sabemos como funcionam as nossas editoras... Se se dignam publicar-te, ou te propõem a compra de um número elevado de exemplares ou te pedem mesmo cash.
Eu - Parece uma boa forma de gerir empresas... O risco torna-se nulo.
JC - Claro que sim. E é também uma boa forma de deixar muitos espíritos criativos no desconhecimento total. Quem dispõe de capital, edita. Quem tem contas a pagar, espera que um dia os seus descendentes, para quem os tem, tenham a sensibilidade de lhe guardar a obra. Deves saber disso, não?
Eu - Sei. Globalmente, o empresariado português é uma farsa.
JC - O empresariado, o operariado, os que usam fato e gravata... Mas não é isso que vai causar o fim do mundo como o conhecemos... Sobretudo como o conhecemos!
Eu - Pois não.
JC - O mundo não pára. Anda, pago-te um copo e podemos falar de coisas menos sérias!
Eu - Não posso. Tenho que preparar trabalho para amanhã... Senão, não pago as contas. E deixo de te poder pagar o blog.
JC - És tu quem me paga o blog?



Declarações recolhidas em 2 de Janeiro de 2006. Foto do Eu.
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