domingo, novembro 30, 2008

Quatro poemas de Joana Semedo

Joana Semedo é uma lisboeta de 32 anos, nascida a 5 de Outubro de 1976 e que, certa vez, me deixou um comentário, no qual perguntava se seria possível ler e analisar alguns dos poemas que gostava de compor nos momentos livres. Dizia-se influenciada pela minha poesia imagística. Por outro lado e contrariamente a mim, que cada vez mais opto pelo uso da rima, recusava o que considerava a prisão e o relativo artificialismo que esta impõe. O mundo de Joana Semedo, casada, com um filho pequeno, arquitecta mas trabalhando geralmente como designer, é um mundo simples, bonito, a negação da face negra da existência, da dúvida que de nós se apodera por entre a fragmentação da vida num meio de crescente agressão. Gosta de dar longos passeios pelas ruas da Lisboa que, em grande parte, lhe serve de inspiração. Sente uma forte ligação à terra, o que perpassa nos seus textos. Não quer saber de filosofias complicadas nem sente a opressão permanente da inexplicável diluição de passado, presente e futuro. Para ela, o tempo é algo simples, como tudo pode ser simples desde que nós mesmos não sejamos complicados.
Joana Semedo é um heterónimo feminino, para já descontinuado por dificuldade (ou preguiça) em manter uma linha plausível e continuada dos seus poemas. Joana é eu e não é eu. É eu, porque, vá-se lá saber porquê, se sente influenciada fundamentalmente pela minha forma. Não é eu porque dela não transborda qualquer tipo de angústia perante a existência pesada de contradições, hipocrisias, egoísmos e interesses velados que o mundo dos homens nos força a carregar. Joana está além, ou aquém, de tudo isso; em todo o caso, noutro lado. E nem é absolutamente original, como eu imaginara... Ao que agora parece, também Fernando Pessoa, o pai de todos os heterónimos, chegou a criar um heterónimo feminino, do qual apenas se conhece, para já, uma carta. Mas vale por si e pela beleza dos seus poemas simples que seguidamente vos dou a conhecer...




Poema 1

As gaivotas pairam ao longo do Tejo
Como flocos leves de algodão em rama
Espalhados num presépio de aldeia.
Tocam as águas fluídas levemente
Com as suas patinhas como algarismos,
Contando as horas que passam, os dias,
Os anos todos levados para o mar alto.
Gritam, chamam-se mutuamente,
Trocam confidências em código animal
No seu voo planado como a vida ao sol.

30 de Junho de 2008

Poema 2

Sob o céu de Santo António,
Sob o olhar atento da lua,
A lua redonda, clara, fecunda,
O céu estrelado, veludo suave,
Perpassam estrelas cadentes,
Uma a uma, fogueteiros,
Sobre a multidão feliz.
Quero apanhar uma estrela,
Guardá-la numa algibeira,
Para afastar os maus sonhos
Do quarto do meu menino.

1 de Julho de 2008

Poema 3

Gosto de conversar
Sobre as nuvens que me cobrem
Como lençóis de flanela
Sobre as ruas que me cercam,
Sobre o rio que me leva
Até às ondas do mar,
Sobre os navios que rasgam
A crista dos meus pensamentos,
E os marinheiros na proa,
E os monstros no fim do mundo,
E as terras além da terra.
E é lá que eu desembarco
E deambulo entre os cheiros
Das cidades portuárias
Onde alma vai morar.

3 de Julho de 2008

Poema 4

Sonhei que sonhava acordada...
E os teus braços abraçantes
Eram cordames abertos
De antigos navios negreiros
No dia da libertação.
E o teu olhar fulminante
Era um raio que rasgava,
Súbito, inesperado,
O céu fundo de galáxias
Onde flui a via láctea.
E tudo era força, energia,
Como as ondas que construo
Na suavidade da vida,
Nos actos de criação.

7 de Julho de 2008



Imagem de: www.bugbog.com.

quinta-feira, novembro 27, 2008

Fumo ascendente





O fumo que ascende devagar daquele quintal
Tão calmamente como ninguém que hoje exista
Desperta em mim um sentimento intemporal
Que também ascende até se perder de vista

O que há em baixo existe em cima reflectido
E no entanto imensamente fragmentado
Como o que é hoje certo e ainda assim perdido
E as vagas imagens diluídas do passado

E assim misturo a infância e rugas bem marcadas
Tão longas como o fumo em breve desfeito
E arranha-céus cinzentos e casinhas caiadas
Lembranças transformadas no fundo do peito

Não sei se é o ilusório que paira na vida
Como uma sombra dura a martelar a fronte
Mas sei que o pensamento é uma maré comprida
E eis-me entre as margens de um rio sem ponte


Imagem de: www.hatchergun.com.

segunda-feira, novembro 24, 2008

Vidro estilhaçado





Os vidros grossos estilhaçados cobrem o chão da entrada
No café assaltado por uma chuva de portugalidade actual
E o mundo enregela e congela a consciência silenciada
Dos que em gabinetes aquecidos governam Portugal

Folhas amarelas doentes vermelhas do sangue colectivo
Gotas assertivas que não lavam nunca os passeios desertos
As copas que se vergam à fúria do vento furtivo
E os cães abandonados encharcados de destinos incertos

É um mundo frio cinzento dito realista
De uma realidade crua tendenciosa de matrizes
A realidade do condómino que apenas se avista
E a que se toca e dói no peito dos infelizes


Imagem de: www.sxc.hu.

sexta-feira, novembro 21, 2008

Formigueiro

Tanta gente se revela, de súbito, tão responsável! Sairam todos do formigueiro e começaram a zoar sentenças num ruído ensurdecedor... Normalmente, são os melhores, os mais esforçados, os mais competentes. Para eles, os outros, os incompetentes, que se danem. Estão a mais e têm que "ser postos na ordem" ou simplesmente ser ostracizados para fora do sistema. Pouco importa que o mesmo sistema lhes tenha permitido ser como são - ou não são - durante as suas vidas inteiras... Não se trata de ser razoável nem humano, mas tão só de ser absolutamente eficaz. Regra geral, deixo-os falar, já que não creio ser possível contrariar a fé. Porque de fé se trata, como a cientologia, a Opus Dei ou a Inquisição. No entanto, prefiro um mundo menos eficaz de gente livre do que um mundo de aparência eficaz, povoado de gente oprimida.



Tanta gente se encontra de repente responsável
Exemplares-modelo de formiga descartável
E à pobre cigarra tão inepta e deslocada
Resta travestir-se de formiga mal amada

Fim ao riso à música à palavra e às artes
Quem não se conforme pode ir para outras partes
Deve acabar a vida miserável e andrajoso
Quem não saltar às ordens de um sargento pegajoso

Se o egoísmo e a hipocrisia fossem tributáveis
Num mundo tão esquecido de gestos amáveis
Que cheios não estariam os cofres-fortes do estado
Que quer o homem vago crédulo e calado



Imagem de: http://animal.discovery.com.

quinta-feira, novembro 20, 2008

Migrações





Gosto de ver os troncos nus das árvores engolindo
Os raios de luz fria outonal que vão caindo
Do céu que subentende o sol num fundo azul
E sonhar-me de asa aberta em direcção ao sul

Perpétua migração das almas pensamentos
Que pairam no destino como pairam ventos
Nas altas camadas vagas rarefeitas
Que cobrem o mundo de roupas desfeitas

Partimos então juntos firmes abraçados
Por caminhos largos e por descampados
Para portos distantes que nos gritam cores
E ao sol todo a pique consomem-se amores

E é lá entre laranjais e especiarias
Entre os burburinhos e as harmonias
Longe das cidades cinzentas de agouros
Que em paz viveremos os dias vindouros


Imagem de: www.vivien-und-erhard.de.

quarta-feira, novembro 19, 2008

Jaz morto Sebastião

Porque não se pode viver à sombra de sonhos mal direccionados e de falsos profetas. Porque urge uma verdadeira cultura democrática que substitua eficazmente o populismo socialista niilista e a pesada hipoteca do nosso destino colectivo que acarreta. Porque não há fatalidades colectivas, salvo as que colectivamente fabricamos e somos levados a fabricar. Um poema anti-sebastianista e anti-mito do Quinto Império, sendo o Sebastianismo um dos factores que mais contribuiu e contribui para a miséria económica, moral e social deste país improvável, ultimamente transformado num campo de batalha ao serviço de interesses inconfessáveis.



Jaz morto o inepto em Alcácer-Quibir
Cavalos o pisam de um qualquer vizir
Na terra-madrasta onde o sol se apagou
É inverno pleno e o tempo estacou

Há, certas vezes, quem mal o aviste
Por entre a neblina de uma manhã triste
E assim se desfaz Sebastião de palha
Em chamas cantado pela maralha

Que inferno é este, fogo congelado,
Um auto de fé nunca terminado,
O lémure das cinzas sempre renascido
E o povo entre os mortos, cadáver esquecido?



Imagem de: www.americaslibrary.gov.

terça-feira, novembro 18, 2008

O homem velho

Este blog mantém o formato. Não passou, subitamente, a incorporar vídeos do Youtube. Acho apenas que este tema e o poema anterior vêm a propósito um do outro...

sexta-feira, novembro 14, 2008

O homem velho (a Caetano Veloso)





Oblongas barbas brancas em escavada face
E olhos fundos de alegria e de tormento
Onde a paz se instalará enfim, rapace
Como um dilúvio branco que lava o pensamento

O homem velho segue a vida lentamente
Como um rio seco que já tudo percorreu
E encara o mundo em cada dia intermitente
E em instintiva paz combina luz e breu

Se tudo é ilusório, temporário
Se fluem os caudais sem rumo definido
Se tudo deixa aos poucos de ser necessário
Se cada decisão é um gesto indecidido

Que resta senão o nirvana ao homem velho
O éden do que é simples e sem amanhã?
A vida é um longo sono muito aquém do espelho
E todos os reflexos se diluem na manhã


Imagem de: www.picturesofjesus4you.com.

quinta-feira, novembro 13, 2008

As sanguessugas





As sanguessugas sugam os dias vindouros
Vestidas de super-heróis salvadores
Chegam sorrateiras, de dia e de noite
E arrancam-nos aos sonhos que são naturais
Tornam-nos soldados em guerras pessoais
Fazem-nos rolar e abanar as caudas
Torcem as memórias, autores de cordel
Essas sanguessugas que adoram o fel
Criam novas fés, dogmas actuais
De deuses severos, inquisitoriais
Roubam-nos a vida e o direito à esperança
E controlam tudo pela segurança
As sanguessugas loucas na lama viscosa
Que mancha a alma e o nome da rosa


Imagem de: www.pigsonthewing.org.uk.

quarta-feira, novembro 12, 2008

Umbigo nº 2





Protesta, esbraceja, sai fumo dos ouvidos
Mente a toda a gente e troça dos vencidos
Deixa as portas escancaradas para o frio todo entrar
Impõe-te com o teu carro, passa o dia a buzinar
Pilha o que puderes e esmigalha o ladrão
Não o do hemiciclo e sim o da prisão
Abusa dos atalhos e chega a nenhum lado
Acusa e avalia com ar empertigado
Protesta, esbraceja e o fumo a sufocar
Malditos fumadores que te roubam o ar
A vida é muito curta e um dia dás contigo
No fundo de uma cova escavada no umbigo


Imagem de: http://dethrower.com.

segunda-feira, novembro 10, 2008

Tsunami





As nuvens pairam cinzentas estranhas descoloridas
Ora claras ora escuras as nuvens desconhecidas
E no solo nas cidades de luz artificial
Negoceiam os poderosos os cheques em branco do mal
Fazem do mundo um casino de máquinas viciadas
E julgam-se ilusionistas nas suas mansões fechadas
E a populaça festeja o seu suicídio iminente
Embriagada pelo vinho da ignorância contente
E a corda estica que estica prestes a rebentar
E ninguém vê o tsunami que se prepara no mar
Nem os poderosos loucos com o cheiro do dinheiro
Nem as massas iludidas engolindo o companheiro
Mas pairam nuvens cinzentas e ruge em crescendo o mar
E ninguém vê o universo à beira de desabar


Imagem de: www.superchefblog.com.

quinta-feira, novembro 06, 2008

Foz





O rio segue alongado
Como uma larga serpente
Que engole o tempo calado
E vai morrer no poente

Tudo estaca à passagem
Dessa energia contida
E estaca a própria paisagem
Cristalizada e dorida

Os barquinhos junto ao mar
As nuvens encasteladas
As aves sós a piar
E as folhagens douradas

Tudo cai no oceano
Nesse lento sorvedouro
De azul profundo, inumano
Gigantesco e imorredouro

E além da roda cadente,
Dos monstros engolidores
Há mais flores, nuvens, gente
E o aroma doce das flores


Imagem de: www.jokerartgallery.com (tela de Sousa Chantre).

quarta-feira, novembro 05, 2008

Crocodile rock





Ainda me lembro do tempo em que o rock era jovem
E que jovem era o rock num mundo de novidades
Num mundo que dinossauros e seres jovens partilhavam
E a cada dia explodiam vulcões de novas ideias
E tudo se coloria de gestos palavras noções
E naves extraterrestres pairavam em céus libertários
E amava-se o futuro em repentes solidários
Depois cobriram-se os ares com fumos industriais
Cinzas sobre o mundo inteiro em movimentos globais
Extinguiram-se os dinossauros outros venderam a alma
E à superfície lodosa assomaram crocodilos
Engolindo as próprias crias banalizando o tormento
E a música amordaçou-se e apagou-se o pensamento


Imagem de: www.sciencenmore.com.
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