quinta-feira, junho 29, 2006

A toupeira


Não me digas o que não me dizes,
Não caias nesse buraco...
Cobre os pensamentos de mortalhas,
Sequer te confies à sombra inescapável...
Não sejas hipócrita, escava somente um abrigo
E nunca sorrias com vácuo no olhar.
És um ser fraco, assim Deus te quis...
A irracionalidade domesticou-te os passos...
Confessa, és um animal!
Adapta-te, sobrevive até mais ver,
Que, algum dia, ambos iremos morrer.


Imagem de www.purdue.edu.

Não escrevo poemas de amor


Não escrevo poemas de amor
Que a chuva lava os passeios
O frio devora o calor
E os belos podem ser feios

Não escrevo poemas de fé
Porque a areia cobre os prados
O que é absoluto, não é
E os deuses morrem calados

O que escrevo é sem idade
Filmes, fotos, sensações
Calmarias, furacões

Que tudo cobrem de sal
De vazio universal
Campos de infertilidade


Imagem de www.stchas.edu.

quarta-feira, junho 28, 2006

Histórias de bigodes


Vejo, por vezes, em locais por onde passo,
Um bigode de Hitler ou de Charlot,
Sempre com um homem calado colado.
Santificada esquizoidia!
Nunca se sabe exactamente o que é o quê...


Imagem de www.cineclasico.com.

Portugalumanidade (poemeto simpleto)


Sinto-me bem nas médias,
Sinto-me bem nos tédios,
Gosto de morar em prédios,
E escuto com atenção
os profetas da correcção.
Sem as médias, perder-me-ia.
Sem os tédios, nada seria.
Os prédios são moradias
De gente laboriosa,
Singeleza populosa.
Amo a palavra singelo...
Podia estar bem pior,
Podia estar em Timor...
Amo a canícula e o gelo.
Como de tudo e de todos,
Gosto de todos os sons,
Murmuro em todos os tons,
Baixinho... só por pudor.
Podia viver em Timor!
Sou modesto, sou honesto,
Pouco importa se funesto.
Vivo da guerra e da paz.
Quem eu sou, tanto me faz...


Imagem de www.teamkramer.com.

terça-feira, junho 27, 2006

I can't get no (satisfaction)


O tempo queria ser outro tempo
Ou não ser tempo de todo,
E o espaço poderia ser feliz
Se o nada contivesse espaço.
O girassol queria ser giralua.
O pássaro queria ser minhoca.
O prédio queria ser barraca.
E Deus? Nada sei de Deus...
Eu mesmo queria ser tu
Se ao menos soubesses ser eu...
Só no limbo se está bem,
Ou a sonhar, sonhar sempre,
A ser outra coisa qualquer
Não sendo nada de todo.


Imagem de www.keithnorval.com (óleo em tela de Keith Norval).
Título (obviamente) de Mick Jagger e Keith Richards.

sexta-feira, junho 23, 2006

Manhã tardia de São João

BAÚ DE MEMÓRIAS


Reúnes-te com a família, com os amigos, credo, ainda sentes o cansaço da folia da noite plena até de madrugada a martelar, a martelar cabeças, o cheiro acre do alho ainda te rasteja no interior das narinas como um ninho de vermes luminescentes, um balão solitário morre ainda em fiapos incendiários como linguetas do espírito santo derramando-se na praia onde alguns acordam aos primeiros raios do dia... Dói-te o corpo de muitas cervejas. Já estão todos em casa a dormir, salvo nas casas onde os pequenos saltam para o sofá e ligam o canal com as animações japonesas. O céu de cinzas de fogueiras esgotadas derrama suavemente o seu manto húmido sobre o Porto e arredores, as ruas ainda meio vazias a ecoar humanos excessos que se escoam lentamente em todas as direcções até ao suave adormecer. Saio para pagar contas, fazer compras, ninguém me convidou para o São João e ninguém me acompanha nas tarefas diárias que realizarei automaticamente, apaticamente, mornamente, depois de um café tão negro e tão fugaz. Sei que um dia o São João me virá bater à porta... “Vinha convidar-te para festejares comigo”. “Pode ser, mas não me quero deitar de manhã”. “Não fujas à vida. Anda. Depois se verá”. Não tenho pressa. Os dias são tão espontâneos! Imagino o céu multiplicado em miríades de estrelas cadentes, a excitação dos astrónomos encerrados em observatórios, os astrólogos a traçar febrilmente cartas astrais actualizadas, balões de São João, tão lentos no seu esplendoroso percurso inescapável... Não tenho pressa. O dia também não.



24 de Junho de 2004



Imagem de http://eventos.clix.pt.

quarta-feira, junho 21, 2006

Avant-garde repetida


Pois será que, com tanta experiência e responsabilidade,
Nunca nenhum de nós se tenha apercebido
De que tudo se encaminha para o fim
E que não há céu algum, somente inferno?
Não sentes o universo a esturricar?
Espreita o vácuo sobre todos os telhados...
Nem estrelas banais há, na cidade onde vivemos,
Quanto mais santos, anjos e estrelas de Belém!
Há que adoptar a fleuma durante a representação...
Porque, no final, é a habitual encenação enjoativa,
Sádica, absurda, repetida e avant-garde,
Em que todos somos culpados para alguém.


Imagem original de www.contrib.andrew.cmu.edu.

Gira-discos onírico de mel


Toca, por favor, esse single uma vez mais...
Mesmo com a agulha rebentada ao meio,
Mesmo com os riscos como aguaceiros,
Esse single que dura mais do que um LP
E desagua em Syd Barrett a solar num acid show,
Com uma slide guitar havaiana e em órbita perdida,
Do tempo anterior às guitarras sintetizadas...
Toca, por favor, esse passado fictício,
Repete o mel fluído do passado imaginário
Num presente impermanente e intemporal de mim...
Toca, por favor, esses sons da minha alma,
Ciente estando de que não compro best-ofs.


Imagem de www.bradthegame.com.

terça-feira, junho 20, 2006

Quadra


Não colhas a flor que cresce, inocente,
Que reverbera os sóis do universo inteiro...
Arranca-me a mim, que vivo doente
E ceifa, se queres, o ecrã e o tinteiro...


Imagem de www.cloudberry.org.

Súplica ao vento revolto


Ó vento que me levas e me arrastas,
Que sopras faúlhas nos fornos acesos,
E empurras folhedos tão indefesos...
Que, a teu bel-prazer, juntas e afastas,
Que uivas um uivo duro e calado,
Vento tirano, mas bem educado...
Leva-me, vento, até ao meu pai!
Leva-me e parte. Simplesmente vai...


Imagem de www.energy.ca.gov.

Mulheres com crianças ao colo


Mulheres que passeiam crianças ao colo...
Crianças que riem, crianças que choram,
Crianças que gritam, crianças que imploram.
E elas levando as crianças ao colo...
Algumas estão fartas, algumas estão mortas,
Algumas estão secas, algumas estão tortas.
Mulheres que transportam crianças ao colo...
Não sei se se riem, não sei se se irritam,
Não sei o que pensam quando me fitam.
Mulheres que passeiam crianças ao colo...
Crianças que dormem e que esperneiam,
Crianças pequenas que com suas mães passeiam.
Crianças sem tempo, seres flutuantes,
Conforto morno dos dias distantes...


Imagem de http://rosegalleries.ca.

segunda-feira, junho 19, 2006

Elegia nº 4 (a Joaquim Camarinha)


Há moradas eternas como pirilampos,
Feitas não de mármore, mas de cor,
Anjos que pairam, invisíveis, sobre os campos,
Tão imateriais como é imaterial a dor...

Há palavras de fotões e o seu mistério,
Inspirações fugazes como o são os anos...
E há o silêncio em cada cemitério,
Presença santa que dispensa vaticanos.

Partiste cedo e à pressa... E porque não?
Sabias que só resta a estagnação
Nas vidas de quem as não escolhe.

De súbito, todo o futuro se encolhe...
Mas não há tempo. Percorres ainda a tua via,
Campo de etéreo, florido de poesia.


Imagem original de www.americatravelling.net.

quinta-feira, junho 15, 2006

Notícias trágicas de Joaquim Camarinha

Eis-me em pleno estado de choque, após ter recebido o recorte de um jornal venezuelano que seguidamente convosco partilho... Joaquim Camarinha, meu heterónimo, meu irmão-gémeo da alma e fundador deste blog terá, ao que tudo indica, falecido em circunstâncias misteriosas! Prevendo que talvez vos seja difícil ler a notícia (procurem, no entanto, clicar na imagem), passo a traduzi-la, dura e seca como só pode ser uma notícia deste teor...


CIDADÃO PORTUGUÊS MORRE NO ORINOCO - Um cidadão português de 35 anos, de seu nome Joaquim Alberto de Sousa Marques Camarinha, foi encontrado na terça-feira passada, vagueando junto à selva, não longe de Puerto Ayacucho, próximo do Orinoco, pelo exército. Camarinha vestia apenas calções rasgados e sandálias e apresentava sinais de alucinação e forte desidratação.As suas únicas e constantes palavras eram "Eldorado". Prontamente transportado para o Hospital Rísquez, em Caracas, acabou por falecer, apesar de todos os esforços da equipa médica local. "Estava muito fraco. Nos seus últimos instantes, procurou falar comigo, mas tudo o que lhe pude ouvir foi "Centro do Mundo". Gostaria de deixar uma mensagem a todos os estrangeiros que nos visitam: não penetrem na selva, onde os perigos são imensos. Devem tomar consciência da existência desses perigos mortais...", disse-nos Juan Ramírez, um dos elementos da equipa médica. Em resultado de o corpo não ter sido reclamado por nenhum parente ou amigo, Joaquim Camarinha foi enterrado no Cementerio del Sur, aqui em Caracas.

Deixa-nos, assim, trágica e misteriosamente, Joaquim Camarinha, de quem tudo desconhecíamos desde a sua partida, a 1 de Abril deste ano. Foi ele quem me apontou novos caminhos na arte poética. Todos os poemas contidos neste blog até ao final de Março pertencem-lhe, passando a constituir um espólio inolvidável. Exceptuam-se apenas Alexandre, de 27 de Outubro, o segundo de Dois Poemas de Amor, de 14 de Dezembro, e Luz de Estrela, de 29 de Março, escassos três dias antes da sua partida para destino desconhecido. Desejo profundamente dedicar-lhe, por modesta que possa ser, uma elegia... Mas não me sinto capaz neste momento preciso. Joaquim, deixaste-nos cedo, mas espero que tenhas tido uma vida preenchida... Penso que sim. Onde quer que te encontres, espero que estejas feliz... Conservo ainda uma vaga esperança de que possa ter havido um engano, uma confusão de identidades, um problema de tradução! É verdade que se trata de um mero desejo, daquele sentimento de negação que brota quando perdemos alguém que nos é próximo... Mas quem sabe? Em todo o caso, não ficarás esquecido. Até sempre, Joaquim!

Tudo morno, tudo imóvel...


Sinto tudo morno, tudo imóvel...
O imóvel rodopio do vento morno,
As nuvens imóveis, rastos de óleo seco,
O cão amarelo, imóvel, morno e silencioso,
Os mais altos muros e os mais baixos -
Imóveis e amornados pelo astro imóvel -
Imensa imobilidade do Além, sacrossanto-niilista!
Todos os sons são imóveis, mesmo os sons,
E nenhuma frase se consegue deslocar.
De onde me jorra, pois, esta sensação,
Esta alucinação, este mover-me só,
Este dormir pouco e avançar a custo,
O mover-me num aquário, entre vidros fronteiriços,
Este abrir caminho pela selva de água imóvel?
Acho que não sei o que seja estar desperto
E que é um pesadelo que me está a ter a mim...


Imagem de http://imagesource.art.com.

terça-feira, junho 13, 2006

Chove e troveja dentro e fora


Chove e troveja dentro e fora,
O que é belo, por ser sexo com a natureza,
(Não por ser exactamente bela a tristeza)...
Fundam-se as fileiras de candeeiros públicos!
Abram-se a meio árvores milenares!
Rebentem máquinas em usinas esquecidas!
Governe a noite imensa antes do dia!
Chove e troveja dentro e fora
E alguém atende o telemóvel, fala alto:
- Estou feliz! Estou tão feliz!
Ri como um trovãozinho entre ondas invisíveis...
Com que candura afirma a fugacidade!
Chove e troveja dentro e fora
E eu exclamo, exclamo, exclamo sem cessar
No meu gosto estético duvidoso, tão outsider,
Imitando os clarões temerários na natureza revoltosa!
Rompam-se todas as amarras dos navios sem rumo,
Enquanto diariamente se parte para lado nenhum!



Imagem de www.nourokphoto.com/ (fotografia de Jonathan Nourok).

quinta-feira, junho 08, 2006

Attends...


Attends...
Dói-me a cabeça levemente,
Talvez por um certo esvaziar da mente...
Dói-me de dor, da sua ausência,
Dói de diferença e de indiferença,
E dói de ideias que só passam, passam, passam,
Como pesados num auto-estrada em obras.
Para onde vão? O que transportam?
Fecha os olhos. Vá! Confia um pouco...
Pára o globo rotativo com o indicador.
Talvez tenhas calhado no meio do oceano,
Aí mesmo, no país dos tubarões...
Voilà!
Attends...
Tu piges pas...


Imagem de http://db.bbc.co.uk.

quarta-feira, junho 07, 2006

A borboleta

BAÚ DE MEMÓRIAS


A borboleta esvoaça entontecida,
Choca contra o vidro, o candeeiro,
Pousa no bordo da vela derretida,
Mergulha suicida na cera, no caldeiro.

Borboleta, que te fica da tua breve vida,
Na noite e dia, que ficou por experimentar?
No céu das borboletas haverá para ti guarida,
Encontrarás tu outra vela onde pousar?

Entre outro cigarro, outra tossidela,
Olho-a diluída e fico a pensar nela…
Diluição, nirvana, no instinto a sapiência,
Mais eficaz na morte que eu na sobrevivência.


7 de Julho de 2005



Imagem original de www.aces.edu (Erin with butterfly).

Propostas culturais para o 10 de Junho

No próximo 10 de Junho, no Café Literário da Feira do Livro do Porto, pelas 16,30 h, Valter Hugo Mãe vai revelar ao público o seu novíssimo O Remorso de Baltazar Serapião, com selo da QuidNovis. A apresentação estará a cargo de Jorge Pinho.
No mesmo dia e na mesma cidade, mas já pelas 22 h, Aurelino Costa vai dizer poesia no Clube Literário do Porto, acompanhado ao piano por Alberto Augusto Miranda. O Clube fica na Rua Nova da Alfândega, 22.
Duas boas propostas para o feriado. E quem quiser ainda poderá, de seguida, ir abanar o capacete a alguma discoteca da cidade, partindo do princípio que terá direito a acordar depois do meio-dia a 11 de Junho... :)
Entretanto, eu mesmo, um dia antes, direi três ou quatro poemas meus no Fórum da Maia (não sou um bom diseur mas sou, pelo menos, o autor), no decurso do Sarau Cultural anualmente organizado pelo grupo de estágio de Educação Física da Secundária da Maia. É a partir das 21,30 h e está numa divisão diferente, mas sempre fica aqui a informação.

sábado, junho 03, 2006

Elogio do hard rock


Duras, tão duras, as pedras na estrada,
Fracturam-se, misturam-se, sob o sol pesado,
Megatoneladas contra o solo queimado,
Implodem e explodem pedras na calçada

Onde o som é luz pura e ofuscante
E a técnica mor, o martelar a rocha,
A alma pega fogo, transforma-se em tocha,
Divindade plana sob o sol gritante

A arte mais forte do que o pensamento,
O som mais cortante que o uivar do vento;
Duras, tão duras, as pedras e a chama,
Divindade plena, muito mais que humana...



Este elogio não se destina ao hard rock indiscriminado e muito menos a qualquer tipo de pseudo-hard rock. Surgem-me na mente bandas como os Blue Cheer no seu melhor, os Mint Tattoo, que apenas gravaram um álbum, fantástico e tão injustamente subavaliado, um certo Jimi Hendrix, os Led Zeppelin (na foto - quem diria?) e pouco mais.



Imagem original de www.poster.de.

O medo do poeta


O poeta percorre planícies e montanhas,
Dorme a céu aberto, sob estrelas e tormentas,
Acha abrigo entre as rochas e em casas de má fama,
Faz voto de silêncio e dialoga com estranhos,
Observa a águia solitária e os carreiros de formigas...
Encontra, enfim, uma fonte seca e as musas encerradas em cozinhas.
Enfrenta o mais fundo dos seus pavores! Que fazer?
Escrever sobre política e entretenimento?
Teorizar a morte e enrodilhar-se contra os colos de prostitutas,
À luz trémula das velas, em bancos de madeira carcomida,
Alagar o corpo de fluídos caóticos e adormecer?
Interroga um passarinho morto, empalhado no local...
"A seca é natural no mundo", pia o passarinho distraidamente.
"E Calíope? E Érato? E Polímnia? E todas as nove musas?"
"As musas são naturais em ti", responde a ave.
"Quantos versos desencontraste à procura desta fonte?"


Imagem original de www.guiguerelandscapedesign.com.
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