sábado, outubro 29, 2005

Nas trincheiras



I

Transpus o negrume de uma igreja
Onde as crianças, forçadas,
Recitam mentiras velhas de dois mil anos.
Percorri as sombras,
Senti o gélido granito,
Bati a portas de madeira escura,
Vi uma cruz ao fundo,
Abri os braços e gritei:
"Fulmina-me!"
Ainda cá estou para ter indigestões e escrever
Poemas que nem são mentiras,
Tão efémeros como a força de um sentimento.
Os pios dirão que Deus me perdoou...
Sorrirão com os seus dentes amarelos e perdoar-me-ão.
Beatífico, mas dispenso todo o tipo de perdões.
Fulmina-me! É o silêncio que é mais fulminante,
Mais letal do que a acção decidida de um raio.
Outros dirão que Deus é um ser mitológico
E a verdade é que talvez nem haja mitologia
Se não houver universo nem coisa nenhuma.
E se houver algo realmente feito à nossa imagem,
A mesquinhez, a incompetência e os interesses?
Fulmina-me! Coisa nenhuma.
Nem fulminas os asiáticos e os seus produtos baratos,
Nem os europeus decadentes, lentamente albanizados em nacionais cegueiras,
Nem os americanos reunidos em templos frente a televisores,
Nem os africanos e os chefes tribais citadinos,
Nem os das bananas, nós também, a meio de um tango, um samba, um sexo,
Nem nada nem ninguém a não ser um inocente por acaso.
Tanto me faz... Na realidade,
Não me fulminares é uma fantasia sado-masoquista
E não cometi crimes para ser perdoado.



II

Chove lá fora.
Uma chuva miudinha, irritante, natural,
Perfeitamente ao ritmo das lengalengas mentirosas
Que as crianças têm que memorizar.
Chove, chove, chove, chove, chove,
O que é ideal para encher todos os açudes
Onde sempre faltará, pelo menos, algum litro,
Algo totalmente neutro para as aves migratórias,
Portadoras de todos os medos medievais e de todas a gripes.
Importante será, talvez,
Redigir actas, projectos e relatórios
Incompreensíveis e inúteis mas justificativos
Do fim do estado humano e dos pesadelos liberais.
Que é feito dos velhos anarquistas e suas bombas justiceiras?
Terão todos os homens verdadeiros morrido algures numa trincheira, na Alsácia?
E chove, chove, chove, chove, chove...
Enterrado na lama de uma trincheira, o fóssil do último anarquista
Que ainda não usava camisas de força com marcas da moda...



III

Fulmina-me!
Chove, mas não troveja,
Enferrujou-se a bigorna de Plutão.
Tempos estranhos, inavaliáveis...
Se chove, é porque chove.
Se faz sol, é porque sim.
E não se está bem sequer a dormir
Porque o próprio deus Oniris
Foi acorrentado a um chorrilho de mentiras
Recitadas de cor por biliões de olhares vazios
Totalmente concebidos à imagem de si mesmos.
E a ausência é mais ruidosa e destrutiva
Do que hordas barbáricas cortando cabeças em Roma e na Nova Ordem.
Se um raio me ceifasse a cabeça, no entanto,
Deixaria de pensar e poderia ser feliz,
Tão feliz quanto Deus poderoso nos permite,
Que é a felicidade inexistente mas pacífica
De não ser-se, não pensar-se, não gritar-se.



Imagem de http://faculty.kirkwood.edu.

Poema de Joaquim Camarinha

quinta-feira, outubro 27, 2005

Alexandre

Eu não tenho filhos nem prevejo tê-los. Tenho pena, mas a verdade é que não encontro mãe para eles e não me acho talhado para a vida familiar. Entretanto, no decurso de uma conversa recente com o o meu heterónimo (estranhamente, ele afirma que eu é que sou heterónimo), descobri que ele tem um filho. Não lhe perguntei como ou onde o arranjou pois achei que poderia estar a ser demasiadamente indiscreto. O facto é que ele me mostrou um poema dedicado ao filho. Invejei-o, pois também gostaria de ter um filho a quem dedicar poemas... Sempre variaria nas minhas temáticas e mostraria ao mundo que sou capaz de amar alguém. Mas cada um é quem é e não pretendo mudar quem quer que seja. Nem sequer é possível fazê-lo. "Tentei fazer este poema à tua maneira", disse-me ele. "É um exercício e gostaria que o avaliasses..." Após uma leitura, disse-lhe que me parecia bem. "Como sabes, não tenho vontade de me publicar em blogs. Mas pensei que talvez não te importasses de me publicar este... Uma vez que se insere no teu estilo..." Renitente, embora, no início, acabei por aceder. Na verdade, é difícil recusarmos coisas ao nosso pai...



É tão engraçado quando me dizes
Que tenho o cabelo cinzento
Porque não se trata, aos teus olhos,
Da cinzentidão de um dia triste
Mas do mar revolto, capa do fundo,
A vida inteira, as correntes, o mistério,
Tanto que é, fórmula mágica de Harry Potter...
Todas as magias são possíveis
Para quem encontra amor e encanto
Em cabelos cinzentos, não grisalhos,
Que para outros são apenas superfície,
Camisas de forças, tentáculos, monstros marinhos, peixes grandes engolindo os mais pequenos!
Tudo em ti é ainda simples:
O céu azul, o cabelo cinzento, as cores do mundo.
Meu melhor amigo, meu único amigo,
Tristemente perto das marés cinzentas
Onde se afogam os perdidos e os loucos...
Quero tanto partilhar-te um pouco mais
Antes que te pesquem à socapa, de arrastão
E enfim te limpem as tripas e a alma!...

terça-feira, outubro 25, 2005

Para Bob Zimmerman

A tua voz vagabunda
Inunda-me o pensamento
De palavras e metapalavras
Que aqui rimariam bem com vento...
Mas o vento é um idiota
No meio de um túnel plástico em Veneza.
Sabe-lo bem, tudo é amor e roubo
E sangue a riscar cada faixa,
O teu, nosso, de alguém, sempre, sempre
Gotejando lentamente
Em espirais de petróleo e carne
Atravancadas de gente e personagens,
Do grande patriarca escancarador de comportas
E dos tempos na sua inquietude mutável.



Imagem de www.volny.cz.

Poema de Joaquim Camarinha

segunda-feira, outubro 24, 2005

Um cão

Um cão...
Espalmado, amarelo, ao sol outonal.
Eu penso no cão
No vão de entrada
E na estrada torta
A esta hora morta.
E o cão?
Dizem que não pensam...
E eu penso que ele está, assim,
A voar em sonhos na perfeição dos santos.
Poema de Joaquim Camarinha

Live fast, drive slow

Há quem viva depressa e morra cedo...
Por mim, nada de inabitual, já me atrasei
E o meu percurso é, todo ele, inqualificavelmente aos soluços.
Talvez me devesse levar ao mecânico,
Não está certo andar assim entre o rally e a caminhada
E a hibernação,
Acho que vou hibernar até amanhã...
Sinto-me cansado como nunca Álvaro de Campos se terá sentido
E não há verdade ou aspirinas que me valham.
Se ao menos fosse um urso, hibernaria,
Juro, por certo hibernaria.
E é impossível não haver uma só alma que me considere um verdadeiro urso...
Tão impossível, pelo menos, como viajar a uma velocidade estável pelo deserto da vida
Com os seus oásis, pedregulhos e cactos ocasionais.



Imagem de www.elearningtoys.com.

Poema de Joaquim Camarinha

sábado, outubro 22, 2005

Alice



Dizem-me que há pessoas más...
Não sei, porque além do horizonte de estupidez e loucura
Somos engolidos por peixes gigantes ou caímos no infinito,
Como aquela mulher de expressão alucinada, à mesa do café,
Fitando infinitamente a parede vermelha, batucando a mesa
E tendo pensamentos que não me importo de ignorar,
Porque talvez dois e dois nem sejam um algarismo,
Podem ser um símbolo, porque não um símbolo?
E, no fim de contas, todos os números são símbolos...
Dizem-me que há pessoas más
E eu só vejo bruma espessa quando olho...
Nos rostos, nas almas, na vida indigna desse nome.
E, no fim de contas, más como quem?
Como as legiões infernais de nomes bizarros?
Como rainhas a ceifar pescoços a soldados de cartas?
Como a cobardia inominável dos políticos da vida normal?
Muito se espantaria Alice se do espelho passasse a esta dimensão...
O chapeleiro louco tomou o poder
Mas foi guilhotinado pelos homens de cinzento.



Imagem de http://kmzpub.ru (do jogo Alice, concebido pelo designer American McGee).

Poema de Joaquim Camarinha

sexta-feira, outubro 21, 2005

Dançando com os elementos

Gosto de sentir o som áspero do vento
A varrer as ruas, a bater à porta,
Quando o bar mergulha no silêncio e na penumbra
E os ébrios partiram um por um
Para vomitar, para ter sexo, para dormir,
Alguns ainda, talvez, para chorar no escuro.
Gosto do gemer do vento
Da frontalidade do sol
Da arte barroca das nuvens
E das vastas extensões desertas
Porque a minha mente
Por vezes
É, também ela, uma extensão deserta.
E é nos desertos que posso ser serpente, escorpião,
Eu mesmo e oásis em mim.
O vento sussurra-me ao ouvido todos os segredos das estrelas
E quando fecho os olhos e bebo o último copo de um trago
É como se todos os elementos me fecundassem a alma
No único gesto possível de amor verdadeiro:
Solitário, ocasional e inesperado.



Imagem de http://members.lycos.nl/rudedski/wallpapers.html.

Poema de Joaquim Camarinha

quarta-feira, outubro 19, 2005

Pinhais ardidos


Antigamente
Certos pais brincavam com os filhos em pinhais desertos
(As mães ficavam nos cafés a socializar).
Partilhavam aventuras e descobertas
E comiam pão com chouriça à hora do lanche.
Se bem que os pinhais não funcionassem com horários...
Funcionavam a aves
Tojos
Silvas
Rochas
Pinhas
Ecos
E histórias,
Tudo o que as horas não sabem medir.
Entretanto, tudo se foi:
A infância
Os pais
E os próprios pinhais.
No local onde antes ficava o pinhal dos fetos
Há agora uma empresa, grande edifício do progresso
Onde as pessoas gastam metade das suas vidas infelizes
.



Imagem de www.geoffmurray.com.

Poema de Joaquim Camarinha

terça-feira, outubro 18, 2005

Vaidade



Hoje, apeteceu-me rimar (só levemente)...




Fixa-te bem no teu espelho,
Fixa o cabelo e a expressão,
Que o espelho não mente nunca,
Quem mente és tu e a visão.
O espelho até te inverte a imagem,
Talvez te endireite um nariz torto...
Talvez dê cor à face desbotada...
E vida a um olhar algo morto...
Está tudo à tona do espelho,
A dúvida e o acreditar,
E assim podes forjar um sorriso
E criticar, criticar, criticar...



Imagem de http://pages.prodigy.net (tela de Chandni).

Poema de Joaquim Camarinha

segunda-feira, outubro 17, 2005

É que agora somos todos iguais!

Diz-se que agora somos todos iguais,
O rico e o pobre, o culto e o inculto, o bom e o mau,
Diz-se até que não há tal como coisa como bom e mau,
Diz-se que cada um faz o que quer
E chama-se a isso liberdade.
Destruir é liberdade!
Ignorar é liberdade!
Viver só para si e colher o fruto do trabalho alheio,
Liberdade!
Liberdade, liberdade, liberdade, liberdade,
A grande revolução cultural...
Quero um livrinho doutrinário em forma de reality show
E uma farda mental que me esconda o incómodo burguês!
Porque agora somos todos iguais.
Mas alguém se deve ter esquecido
De transmitir o comando à natureza...



Imagem de http://graphitefurnace.blogs.com.

Poema de Joaquim Camarinha

sexta-feira, outubro 14, 2005

Uma andorinha cansada


Veio uma andorinha pousar no meu beiral...
"Andorinha, a Primavera?"
"A Primavera morreu".
"E o teu andorinho, que lhe sucedeu?"
"Bateu asas e morreu".
"E todos os que voaram?"
"Nos quatro cantos do mundo. Mortos e olvidados".
"E a alegria de voar? Porque pousaste, andorinha?"
"Também morreu. Cansei-me. Voei demais".
Não lhe vi o bico triste,
Antes normal, tão normal, passarinha,
Uma ave quase banal.
"Mas tudo é morte para ti?"
Fitando-me em cheio nos olhos
Como vem nos manuais,
Disse-me a andorinha:
"Na vida tudo é morte pura.
Nem tu nem eu existimos,
Nem esta nossa conversa,
Nem o que possas escrever.
Não tenho que ser da noite
Para entender a negridão
Ou a branquidão, se preferes".



Imagem de www.darkpisces.net.

Poema de Joaquim Camarinha

quinta-feira, outubro 13, 2005

O Vento Lá Fora

Se tudo é pura mudança
Nas palavras do poeta,
Se o próprio tempo balança,
Chuva e sol no mesmo dia,
Se o próprio tempo não é
Como não existe o espaço,
Afirma-o a própria ciência,
Porque me perturba a impermanência
E a permanente existência?
Serei um sonho num sonho
Ou a sua inexistência?
Sei somente que o meu verso
É o da Vénus de Milo
Quando se ouve o vento lá fora
E o vento está, afinal, cá dentro,
Onde quer que isso pudesse ser...



Imagem de http://news.bbc.co.uk.

Poema de Joaquim Camarinha

quarta-feira, outubro 12, 2005

Uma Puta

Em cada esquina há uma puta,
Amarela, sorriso trancado,
Gelado, a puta do idiota,
Que odeia o outro e a si
E não sente coisa alguma.
Junta na sombra em que vive
As jóias e as más intenções
Para a velhice, a flacidez, o olhar de peixe.
Transforma rapazes em homens
Como um sargento crispado
E lembra sempre, esquecendo,
No cano da sua arma,
Em marcas feitas com unhas,
Em marcas vermelho sangue,
Em sangue tão incolor,
Os animais que caçou.
Não tinha que ser uma puta,
Podia ser respeitável
E puta,
Tão puta para todos...
Um dia, seca enfim, poeira, pó,
Deixará as economias ao coveiro
E as memórias a um editor.



Imagem de www.reevesstudio.com (de Esther Reeve).

Poema de Joaquim Camarinha

segunda-feira, outubro 10, 2005

Gostaria mas não gosto (e tanto me faz)

Como gostaria de acreditar em acreditar!...
O rio desce até ao mar de mãos dadas com a corrente,
As nuvens deslocam-se nos céus ao capricho dos ventos,
O leão caça e brinca com as crias por ser assim,
Os animais acasalam pela natureza fora
E todas as coisas crescem, decaem e voltam a crescer.
Talvez me sinta, hoje, extremamente campestre...
E até Deus não precisa de existir para existir em todo o lado!
Aqui, no súbito silêncio do bar ensombreado, após as cinco da manhã,
Sinto a cabeça vazia demais para acreditar...
"Joaquim, atestas-me esse copo com uma bebida assassina?"
"Boa ideia, Joaquim... Preciso de algo que me impeça de sonhar."



Imagem de www.superherodesigns.com.

Poema de Joaquim Camarinha

sábado, outubro 08, 2005

Elegia


Há cemitérios belos e pacíficos
Como há igrejas belas e pacíficas
E céus tão azuis que nos esmagam
Com o peso do universo inteiro.
Nos cemitérios e nas igrejas, belos,
Há muitos granitos, mármores incontáveis,
Anjos da guarda chorando a incompetência,
Todas as lágrimas que salgariam sete mares.
Além dos gélidos mármores, encontram-se
Todos os que não mais abraçaremos,
Todos os que não mais escutaremos,
Todos os que um dia chegámos a achar ridículos...
E olhando-nos agora nos espelhos
Deste universo onde tudo é impermanente
Ficamos face a face com o nosso próprio ridículo
Porque nada entendemos do etéreo nem do relativo
E porque todos, tantos, sempre permanecerão ausentes
Da mesa onde repartimos copos e bebemos para esquecer.



Imagem de www.melancholy.com (capa de Joy Division).

Poema de Joaquim Camarinha

sexta-feira, outubro 07, 2005

Heróis da bruma de mim de nós


A bruma, eu nos seus braços
Apertados e gentis,
Derramada em gotas no meu cabelo farto
E no empedrado recém-calcetado da rua silenciosa,
Ignorante de Avalon e Dom Sebastião,
Tão simples como eu, simples,
Projectada a preto e branco ou em cores desbotadas
No interior do meu olhar
Onde moram os fantasmas
Que me falam em desencontros projectados, quase arquitectónicos...
Falam-me do amor, essência do etéreo,
Dos heróis e heroínas do meu tempo
Vivendo agora em terras utópicas
Onde não há agoras, só recordação.
James Dean repetindo o acidente eternamente...
Humphrey Bogart à minha mesa, fumo e álcool...
E todos os heróis dos palcos, ácidos e humanos,
Esquecendo-se de mim deste lado do balcão...
Pago uma rodada a todos os fantasmas
E conversamos alto
De arte, homens e mulheres, do mundo,
Fantasmas tão humanos, meus irmãos na bruma!



Imagem de www.casalinx.com.

Poema de Joaquim Camarinha

quinta-feira, outubro 06, 2005

Body & Soul


Corpos e almas
Cérebros e neurónios,
Talvez um deus dos corpos
Um das almas
Ou outro qualquer ou não...
O poeta tudo deseja
E deus, nenhum talvez, ou não
Manifesta-se na ilógica absoluta
Das operações de dividir
Com que constrói os cosmos.
Menor será, certamente, a razão do poeta
E dos seus universos sempre tão caducos...



Imagem de www.hagtvedt.com.

Poema de Joaquim Camarinha

terça-feira, outubro 04, 2005

Sabedoria popular



"Os grandes génios... é um gene...desses que andam para aí!",
diz o homem gordo à rapariga, entre um prato e um café.
Os grandes génios...
Os grandes poetas...
Os gordos e os magros.
Tristíssimo, o meu destino de poeta menor,
Quem sabe não nasci com apenas meio gene?
Haverá, entretanto, quem esteja pior e viva sem gene algum!
Levantam-se e o homem continua:
"O que temos é a mania de querer compreender o que não comprendemos!"
Chama-se a isto sabedoria popular.



Imagem de www.brandmarshallart.com.

Poema de Joaquim Camarinha

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