quinta-feira, abril 30, 2009

Ode aos anarquistas do Primeiro de Maio

Este poema foi inspirado por notícias veiculadas na televisão de que a polícia se encontrava de prevenção no Primeiro de Maio, visto serem aguardadas manifestações violentas por parte de "esquerdistas" portugueses e estrangeiros. Que pedrada no charco, nesta terra adormecida por tão brandos costumes! Claro que nem eu tenho idade nem disposição para participar em motins, nem me responsabilizo por qualquer manifestação "não-autorizada" que eventualmente possa partir de grupos esquerdistas que, como alguém disse, "se dedicam a destruir o que custou aos outros a ganhar". Como, aliás, permitam-me salientar, de forma alguma me responsabilizo pela destruição insidiosa que as nossas classes dirigentes têm vindo a semear...
Nota a 2 de Maio, apenas para os anais da história: como já deveria ter calculado, os anarquistas portugueses, convenientemente vigiados pela PSP, levaram a cabo uma marcha silenciosa. O facto praticamente não foi noticiado pelos canais de televisão.



I

Circulo no meu automóvel, tão pequeno e arrombado
Com a gaveta toda aberta, pára-choques amolgado
Ruídos na direcção e um risco na porta do lado
Travo numa rotunda face a um Mercedes potente
Que surge da ruazinha e se intromete na frente
Conduzido por uma dama que leva a prole contente
Tenho que ficar calado, melhor ficar indiferente
E então exclamo para dentro, calando a história e a alma
Quantas vidas desgraçaste?
Quantos divórcios causaste?
Quanta gente despediste?
Quantos salários diminuiste?
Quantos momentos roubaste?
Quantos orgasmos fingiste?
E ela leva o carro e a prole como quem leva o seu cão
E eu chego ao primeiro de Maio, filho da revolução

II

Ei-los...
Os sindicalistas barricados em razoabilidade
Os palanques bem montados numa praça da cidade
Chega sua excelência, saúda sua eminência
Encontram-se todos ali, num dia feito de ausência
Curvam-se, bem comportados, numa breve reverência
O país goza o feriado, o país todo adormece
E ali perto, num beco, um cão vadio apodrece
Subitamente...
Um ruído
Um clarão
Uma massa
Um maremoto
Cocktails molotov pelos ares
Montras de bancos em estilhaços
O mármore todo em pedaços
Parelepípedos lançados contra a polícia de choque
Senhoras e senhores entrechocam-se atarantados
BMWs e Mercedes balouçam de pernas para o ar
Os palanques caem todos como baralhos de cartas
A cidade a ferro e fogo, as câmaras a filmar
A vingança que se atiça e no beco o cão a uivar

III

Bum! Bum! Bum!
(Um desastre de proporções bíblicas
Uma calamidade pós-diluviana
Deuses pré-colombianos engolindo corações)
Viva Pancho Villa!



Imagem de: http://media.portland.indymedia.org.

A crise





A crise cai aos pedaços como uma cortina de fumo
Estampa-se estrondosamente, uma cortina de ferro
Amordaça as bocas mudas e os restos de consciência
Longe das propriedades, das cidades cor de rosa
O cheiro pútrido ao longe, divisórias perfumadas
Guardem-se bem os rebanhos no fundo dos seus ovis
Racionem-se os alimentos para o gado ruminante
Quando eurecam os profetas sorridentes, reunidos
Em torno de mesas fartas no interior de revistas
Em redor de consommés, aves raras, vinhos finos
É tão imenso o cansaço do bom latifundiário
Observando ao fim do dia a força do animal
O regresso agradecido e curvo do animal
À favela agigantada, um vírus, um cogumelo
A fortuna do animal isolado entre a família
Porque longe a aparência da panela da sopinha
Agradeçam aos Senhores a benção da existência
Resguardados pelas cortinas da mais completa insolência


Imagem de: www.pensler.com (tela Unemployed, de George Grosz).

quarta-feira, abril 29, 2009

Círculo completo





Lembro-me bem de ti, amigo, Osswald, Guilherme
Exclamando estou farto desta merda com o teu aguilhão
Tu, escorpião, cansado, frustrado, zangado
Contra o mundo e o seu círculo de fogo
Tu, Guilherme, sentado, cansado do jogo
Lembro-me de ti, teclando as tuas fúrias
Nunca encarei o teu fartar como lamúrias
Achava-te graça no nosso Portugal aceitável
Exclamando, ainda assim com o teu ar amável
Cresci, entretanto, e encontro-te nas ruas da memória
Como vais, e eu, como que encontrando respostas no tecto
Estou farto desta merda e o círculo fica completo


Imagem de: http://news.bbc.co.uk.

Mutação





alma lama maca cama
mutação diluição
o tempo
o fundo
o mundo
geração
procriação
provocação
a decadência
a incipiência
os que mandam
os que demandam
e os que se curvam
lama alma cama maca
deus ateus adeus


Imagem de: http://sablay.org.

terça-feira, abril 28, 2009

Pomba branca





Quero uma pomba branca na palma da tua mão
Que constrói e desconstrói raciocínio e emoção
Que cimenta os muros fortes da casa que imaginamos
Num planeta muito azul, tão azul como o pintamos

Quero uma pomba branca que paire por sobre o mar
Uma pomba sobre as nuvens que somos nós a pairar
E as asas que nos transportam não derretem sob o sol
Que nos aquece e ilumina nas faldas do teu lençol


Imagem de: http://seriocomic.com.

segunda-feira, abril 27, 2009

Os portugueses




O país que ama Sócrates e desculpabiliza os corruptos. O país que elege António de Oliveira Salazar como o Maior Português. O país da raiva e do controlo.



Os portugueses, coelho malévolo num videojogo perverso
Tomando notas, acorrentando relógios obtusos aos pescoços inimigos
Os portugueses, que amam a Inquisição e vendem volfrâmio ao Eixo
Que encontram alçapões tenebrosos pelas lojas dos Chineses
Que fazem filhos africanos e os enviam para o alcatrão fervente
Fechados em salas curtas, traindo nos corredores do medo
Amando a trela e o controlo, o povo mais hospitaleiro
Que atiram com a própria mãe para as masmorras caladas
Buzinam, buzinam, buzinam como avarias eternizadas



Imagem de: www.nndb.com.

sábado, abril 25, 2009

A liberdade





Há quem afirme que precisamos de um novo 25 de Abril. Enquanto não chega, se alguma vez chegar, aqui fica uma foto bem vermelha para celebrar a liberdade...

sexta-feira, abril 24, 2009

Cidade (a Ch. Baudelaire, inventor da prosa poética)





do cimo de um monte denso enevoado da fenda mais funda de abissal negrume vê-se essa cidade toda iluminada toda um artifício toda construção um cinemascope feito de ilusão feito de memórias feito de futuros turvos conturbados surgem como muros em tons variados nuances de sons sonos acordados sorrisos marcados de emoções vazias também palpitantes como tamborins e a vida talvez e os nãos e sins e as pálpebras cerradas vêem o universo palavras tão largas o verso e o reverso


Imagem de: www.reiseimpressionen.at.

quarta-feira, abril 22, 2009

Benção rara





Peço a benção rara de morrer no sono
Entre prados verdes e flores fulgurantes
Nuvens carneirinhas, regatos cantantes
E a consciência levada ao abandono

Nu me entregarei ao azul precipício
As roupas perdidas sobre a terra herege
Caminho uterino que assim nos protege
E nos teleporta do fim ao início

Lá encontrarei minha mãe, meu pai
Minha avó materna expectante a olhar
O regaço morno e seguro do lar
Todo o intemporal que nunca se vai

Peço a benção rara da simplicidade
Do deus poderoso não castigador
Da demolição do prazer, da dor
De todos os prédios da minha cidade


Imagem de: www.trekearth.com (foto de Kevin O'Sheehan).

terça-feira, abril 21, 2009

Almofada





Silencio o meu discurso com fronhas de enigma aparente
Pelo grande espaço branco que me cresce nos sentidos
A branquidão do vazio, o conforto do cansaço
Como uma imensa almofada que me aguarda até ao fim
Almofada, minha noiva, ciosa de fragilidade
Escorrendo-me pela garganta, prendendo a respiração
Traio-te em cada dia, luminosa sedução
Com os carros a passar, as aves a chilrear
Com o sol que cobre a terra, a terra que abraça o mar
A lua na noite insone feita de abraços carnais
A ilusão da vida nova em casas, estradas e cais
Almofada, minha noiva, que nunca me possuirás
Perdoar-me-ás a traição e ainda assim guardar-me-ás?


Imagem de: www.pbase.com.

segunda-feira, abril 20, 2009

Sorry, mister egg





Todo o universo existente me escuta
Num escutar quase absurdo de inocente
Escutam-me as florestas, os campos, os jardins
Os prédios, as ruas e os automóveis
As chávenas, as colheres e as batedeiras
Escutam como escuto num silêncio imóvel
Dormimos e sonhamos tão miticamente
O olhar aberto para o que se sente
Se toco na mesa, ela não me foge
Se abraço a almofada, ela não me exige
Se parto algum copo, ele não fica irado
Há vida que vibra em tudo sob os céus
Vida que me escuta no limiar de Deus


Imagem de: www.shelleygrund.com (tela de Shelley Grund).

domingo, abril 19, 2009

Cinema vivo





Ouço na cabeça velhos gira-discos
E tudo me rodeia como um filme intruso
Um filme bizarro, surreal, obtuso
E música coberta de poeira e riscos

Tantos figurantes sem rosto nem idade
Falas que proferem mecanicamente
Gestos que repetem maniacamente
Tudo tão confuso na normalidade

Ouço apenas sons vagos de ondas contra a areia
Vejo apenas formas e cores misturadas
E as vidas de todos, todas tão quebradas
Perdidas nos palcos e eu na plateia

Sou um passageiro, espectador ausente
Preso a uma cadeira, condenado a olhar
Que enquanto eles partem estou sempre a filmar
E baralho tudo no tempo presente


Imagem de: http://sesantos.com.ph.

quinta-feira, abril 16, 2009

O tempo





O tempo esgueirava-se por sob as frinchas das portas
Sumia-se pelos ralos estreitos e negros das pias
Fugia nas asas grandes de um pássaro de fogo irreal
Todo o tempo consumido pela imperenidade
Os fantasmas do passado à espreita sobre o ombro esguio
Exclamando ordens inaudíveis sobre o ombro fugidio
E os fantasmas do presente e da chuva de incerteza
A enxurrada de luz do dilúvio ao regadio
Os fantasmas do futuro, sempre ausentes, os fantasmas
Em filas tão alongadas construindo a congruência
E o tempo que se esfiapa nas areias do deserto
As areias movediças desse tempo inconstante
O tempo consolidado como uma célula mutante


Imagem de: www.masterworksartgallery.com (tela de Johann Heinrich Schonfeld).

quarta-feira, abril 15, 2009

Águas de Abril





Os anjos derramam tal tristeza
Feita de alucinações, condensações
Que em plena tarde e também aos serões
Se faz um mar sem fundo a natureza

Chovem nos jardins árvores curvadas
Ao peso dessas lágrimas tão duras
E o sol aprisionado nas alturas
Divaga em amplas solidões caladas

O passaredo abriga-se do vento
Num da capo fortíssimo e pausado
Como um tempo gasto entrecortado
Como um filme mudo em pensamento

Deixem-me dormir e acordar
Ao fundo deste Abril tradicional
Ao som de uma romaria estival
Ao brilho de ondas mornas de outro mar


Imagem de: www.news.wisc.edu.

Abraça-me





Abraça-me as arestas ternamente
Como quem abraça o próprio vento
Como quem segura, agarra o dia lento
Como a árvore vai crescendo da semente

Suspira ao meu ouvido engolidor
Os teus sonhos mais simples, mais prementes
O estertor dos teus olhares incandescentes
Toda a expressão do teu instinto e amor

E eu serei para ti a pomba nua
A águia real rompendo o céu cinzento
Que entre os turbilhões do pensamento
Te entrego a minha vida, toda tua


Imagem de: http://kimhunter.ca (aguarela de Kim Hunter).

segunda-feira, abril 13, 2009

O impalpável





A beleza invariável das coisas
É um par de melros a saltitar na relva
Um pardal a pairar de ramo em ramo
Um cão que abana a cauda de liberdade fugaz
E o silêncio do mundo na capa volátil do vento
Quando os estudos matemáticos dos casais ainda jovens
Entremeados de beijos e sussurros nos ouvidos
E, depois, resguardados em quartos e casinos no Algarve
Em esforços de racionalização de sonhos estilhaçados
Como a matemática toda estilhaçada pelos escritórios
Quando o universo inteiro for uma bola de fogo feita cinza
No álbum de memórias do deus fora dos templos restarão
Os melros, os pardais, os cães, o vento e o silêncio solto


Imagem de: www.trekearth.com.

sexta-feira, abril 10, 2009

Baía





Havemos de morar numa baía
Perto de um porto fervilhante
Mas, ainda assim, algo distante
Toda ela envolvida em maresia

Com aves coloridas saltitando
Entre as ramagens dos pinheiros mansos
Inteiramente embrulhadas nos remansos
Da luz tão branca, tudo calcinando

Nas cercanias da nossa habitação
Entre ruínas e fontes antigas
Pelas planícies largas, ressequidas
Escutar-se-á dos grilos a canção

Bem perto, em estradões estreitos
Passarão automóveis raramente
E burros caminhando lentamente
Ao som vizinho de ondulares desfeitos

O dia azul nunca será de breu
O dia sempre, tão mediterrâneo
Como um retrato nosso, um instantâneo
Do tempo que inventamos, tu e eu


Imagem de: www.footscapesofcrete.com.

quarta-feira, abril 08, 2009

O pato

Génese - Entrámos no automóvel e pedi ao meu filho: "Dá-me uma frase!" "O pato voou", respondeu-me. Ele não sabia para que era a frase e achou que não se adaptaria bem a um poema. Mas eu encontrei graça no mote...




O pato voou
Como uma asa-delta
Como um parapente
Um pato diferente
Uma curva esbelta
No céu que encontrou
Voou para nascente
Voou para poente
Em voo picado
No céu conturbado
Onde pairou
Num voo selvagem
O pato, a miragem
Como uma imagem
Sempre de partida
A asa batida
Sem rumo traçado
Soltando um grasnado
Como um riso breve
O pato tão leve
Pousou



Imagem de: www.tzengs.com.

terça-feira, abril 07, 2009

Leoa





As gotas de água sobre o pára-brisas
Os raios de sol que aquecem as folhagens
As nuvens que pairam comprimindo imagens
As cores repartidas pelas paredes lisas

As sombras e os sons da manhã tardia
Os repuxos brancos em fontes azuladas
As brochuras de viagens semi-planeadas
Os ecos da TV e da telefonia

Tudo é teu e tu como vejo e vi
O dia e a noite longos, abraçados
Todos os tempos tão entrelaçados
O universo inteiro que me leva a ti


Imagem de: www.funnypics4all.com.

Melro de bico amarelo





Melro de bico amarelo
A que a cabeça não dói
Nem ideia alguma mói
Na mó do tempo novelo

Passaste tão brevemente
Que já não sei se és real
Ou uma imagem no caudal
Do rio que arrasta a mente

Fundido com o céu cinzento
No teu bate-asas fugaz
Estavas cá e já não estás
Gémeo perfeito do vento

Quem dera ser teu irmão
Sem trabalho de viver
Sem a cabeça a doer
Uma pena em flutuação


Imagem de: http://sitiodoshaicais.blogspot.com/.

sábado, abril 04, 2009

Paisagem cubista





Um automóvel azul cruza a noite silenciosa vejo-o da janela de um hotel proibido fumar e lanço a pirisca no vazio de um largo numa pequena cidade serrana arroz de carqueja feijocas e vinho local para onde vai para onde foi instalaram um atm na aldeia onde no velho café já não jogam cartas e ninguém fala alto é agora um mini-mercado todas as caras são desconhecidas e o mirante do relógio cobre o tempo de patos bravos migrantes inocentes das suas asas modernas aterram nas festas estivais ao longo dos anos que desenvolvido está este centro de novas tecnologias altos prédios cor de rosa e cadeias de restaurantes tão iguais perto do pólo universitário e no portugal de hoje tudo proibido oferece-me uma aguardente caseira mas não proibiram também os alambiques é necessária autorização suponho e não é fácil ele encolhe os ombros mas a serra cresce entre o vento agreste farrapos de nuvens e neve gasta no silêncio fundo só uma nuvem numa chávena de chá preto quando o presente contamina a paisagem ao som nervoso esbracejante das buzinas e ruídos e filas do fim de tarde crises e despedimentos dá-me um beijo e as estrelas voltam a brilhar em sonhos interligados


Imagem de: www.algo.online.pt.
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