terça-feira, maio 30, 2006

Uma tela impressionista


Num charco, uma flor de lótus flutua
À sombra das folhagens verde-escuras...
Longe está a cidade, o ruído, a rua,
E assobia o ar nas tenras verduras.

O ar, que perpassa um raio vibrante,
Dádiva feérica, divindade,
Ausência, o próprio olhar dos céus distante...
Estão longe a rua, o ruído, a cidade.

Sinto, não penso, tanta luz e paz,
Tamanha impressão e mobilidade,
Longe da rua, o ruído, a cidade.

E eis que tudo é artifício fugaz...
Eu, debruçado, fixando a corrente
E a água fluindo na minha mente .



Imagem de www.watersart.com (tela de Lisa Marie Waters).

segunda-feira, maio 29, 2006

No fundo dos blues contra um fundo azul


Só peço para ser transportado para a dimensão dos blues...
Molemente, docemente, lentamente e a sorrir,
Com a raiva e o fulgor que são o gozo do carpir.
Quero chorar borboletas no fundo da digestão,
Sofrer do alívio cruel de nunca haver amanhã,
Nem anteontem, nem hoje, nem tempo algum previsível,
Salvo o tempo exacerbado de cada som intangível,
Salvo o grito da guitarra suplicando a salvação...
Tanta alegria e tristeza, tão abstracta confusão,
Tragam-me o capitão Kirk, quero a teleportação!
Não fico nem mais um compasso.
Diluam-me em sensação...


Imagem de www.boyleroy.com.

sábado, maio 27, 2006

A brisa


A brisa, ensaiando o seu concerto
Nas folhas tenras dos dias de calor,
Faz-me cócegas agudas nos lábios,
Força-me os lábios a sorrir.
É mágica, mística, um faquir...
Engole fogo, deita-se em camas de farpas,
Caminha sobre vidros, tem poderes telecinéticos.
A brisa é muito superior ao génio humano.
Passa um carro fúnebre e geme uma marcha lenta...
Uma motorizada é uma guitarra a distorcer...
A mãe e a filha ciganas gingam num flamenco...
Escuta-se o som das palavras, um som tão contemporâneo!
Mas a brisa segue calma, a brisa toca com alma...
A brisa é um dia de sol em pleno Mediterrâneo.


Imagem de www.artbynancyg.com (tela de Nancy G).

Um caniche do inferno


Após debates intensos e extensos,
A igreja concedeu alma à mulher.
Louvado seja o Senhor!
E os animais? Terão eles alma?
É que moro à beira de um caniche
Que rosna e ladra, noite e dia, sem parar...
Para os donos, a solução é muito simples.
Mas não sei se posso mandar caniches para o inferno!


Imagem original de www.apaa.asso.fr.

sexta-feira, maio 26, 2006

Vertigo


As gotas tombam como pedregulhos
Noutros locais do universo.
Aqui, o sol cai aos trambolhões
Como montanhas atiradas de um vulcão.
Cai também a noite.
Amordaça-nos a escuridão.
Vertigo, a vertigem do cinema,
A vida inteira num palco,
Que pobre lugar-comum!
No palco está tudo engendrado,
O próprio caos tem sentidos
E há sempre, ao fim, a cortina.
Passam os nomes da equipa,
Todos os agradecimentos
E ninguém fica esquecido.
Dizem que o que escrevo é sofrido...
Não é bem...
Capto apenas o vazio
Humano da desconstrução.


Imagem de www.talkingpix.co.uk (Título do filme homónimo de Hitchcock).

O sentimento da destruição


Se o tempo não me permite,
Se a vida não me autoriza,
Se não me sinto capaz,
Se assim sou injustiçado,
Porque hão-de as coisas ser feitas?
São coisas sempre incompletas.
São coisas sempre imperfeitas.
São coisas feitas por outros.
Mais vale não haver nada,
Mais vale viver no vazio,
Mais vale que ninguém valha.
É que a vida é complicada...


Imagem de www.walking-wounded.net.

quinta-feira, maio 25, 2006

Saudade ou nostalgia?


As línguas vibram à sombra do planeta...
Tocam-se, por vezes, sem que se penetrem,
E só se compreendem no espaço mítico do sonho.
É por isso que há artistas e tradutores,
É essa a razão dos paraísos artificiais.
As línguas movem-se em sonoridades desconexas,
Querem falar, instintivamente, do que desconhecem:
O gosto do animal não abatido,
O passear-se às cavalitas do leão...
Emaranham-se no crescendo das palavras,
Tornam-se a teia sem jamais serem a aranha.
Saudade ou nostalgia?
Diariamente, as línguas calam e golpeiam
Por serem incapazes de se definir.


Imagem de www.flickr.com (fotografia de True Bavarian).

quarta-feira, maio 24, 2006

Dois poemas americanos

BAÚ DE MEMÓRIAS


Agora, o package turístico de desolações:
Um motel e um restaurante-loja de recordações
Artesanato navajo a cada curva da estrada
E rocha vermelha, erodida como uma imensa escada.
No interior, o que sobra da índia nação -
Souvenirs, danças típicas e uma refeição.

Gray Mountain (Grande Canyon), 7 de Agosto de 1996



Agora, o package espantado de contradições:
No larguito do coreto, o crescente das canções
Marca as danças dos espíritos, como águias invencidas
Que os grass dancers encarnam em revoltas contorcidas.
Aííííí-ahhh-hiii! - cantam os novos navajos
Confundindo coloridos no vôo excitado dos trajos.
Junto à Route 66 uiva o cavalo de ferro
Numa voz meio perdida pelos campos do desterro
E a forçosa bandeira que o xerife vigia
Faz-se um estandarte de penas embrulhado em ironia.

Holbrook (Floresta Petrificada), 9 de Agosto de 1996



Estes poemas fazem parte da obra Ghost Dance (a que alguém teve a ideia de acrescentar Histórias do Surreal Americano), na qual cinco short stories são antecedidas de poemas introdutórios, para além de um Prólogo e de um Epílogo, ambos igualmente em verso. Publicado em 1998, encontra-se retirado dos escaparates por meu desejo, mas acessível, com opção de autógrafo para quem quiser, a quem me contactar por email manifestando o desejo de adquirir a obra.



Imagem de www.bergen.edu.

terça-feira, maio 23, 2006

Marilyn


Que bela e sensual pilha de ossadas,
Polidas, curvilíneas, desejáveis!
Certamente, porque a morte é mais real
Que o fino celulóide museológico...
O que já foi, já foi. Se foi...
O que é, nunca chega realmente a ser.
Mas o cálcico testemunho da existência
Contradiz o tempo e é pó de estrelas...
Logo, luminoso. Logo, inolvidável.
Que triste pode ser este percurso...
Existir é passar a correr pela eternidade.
Ninguém tem respostas nem explicações
E nem creio que de tal haja necessidade.
É nos epitáfios que se lê a realidade.


Imagem de http://simonperry.org.

segunda-feira, maio 22, 2006

Laudanum


Vêde aquela dama sorvendo láudano
Verde, talvez, o entorpecimento
Como se dilui na doce penumbra
E se torna una com o universo

Ela é, agora, o coração do verso
O verbo anónimo de olhos cerrados
Vogando entre vagas assimetrias
Onde tudo é ordem e vera beleza

Onde tudo é som, linhas e leveza
Ave migratória, suave tristeza
Alegria abstracta, desconcertante
Somos, fúria e paz, um tempo distante


Imagem de www.echo-online.de (Johnny Depp em From Hell).

Roda dentada


Auto-consideração.
Auto-suficiência.
Auto-comiseração.
Auto-complacência.
Auto-gestão.
Automóvel.
Automatização.
Autismo.


Imagem de www.truquesedicas.com.

sábado, maio 20, 2006

Fotografias


I



Moro numa casa forrada a gavetas,
Gavetas forradas a sensações,
Sensações forradas a fotos como tufões...
Ganham vida própria, invadem-me a roupa,
Colam-se-me à pele, tentam perfurá-la,
Como aliens de guarda, só instinto e agressão,
Cor e luz exacerbadas na total escuridão.
Ao acordar, agarro umas quantas, examino...
São folhas lisas, brancas, de um tempo aprisonado,
Gelo puro, intocado, como astros dos confins.
Que cataclismo cósmico as esvaziou assim?
Nunca Deus por lá passou, nem deuses,
Anjos, demónios, entes espirituais...
Papel couché todo em branco, milagre da concepção.



II



Devo ter uns sete, oito anos...
É Páscoa e os peixes sofrem a rapina.
- Diz-me, filho, em que pecaste?
- Acho que respondi mal à minha avó...
- Reza três Pais Nossos e dois Avé Marias.
Tenho, agora, a alma absolutamente branca
E incontáveis fotos, brancas também, para a eternidade.

sexta-feira, maio 19, 2006

Mil anos de solidão


O negrume é.
Nada sei da gravidade,
Desconheço as sensações,
Devo ter parado de respirar...
Zero dissoluto.
Nada é absoluto
Ou virtual.
Criam-se palavras...
E não são elas desde nunca?
Imensa claridade atroz,
Afonia, silenciada voz...
Disse negrume?
Podia ter sido árvore, mesa, muro, fonte, fósforo...
Achas que se trata do nirvana?
É um cansaço tão viral
Que obriga ao esforço impossível
De reformatar tudo o que é
E não se dilui com cem anos de sono.
Bruxa, é tua a vitória virtual,
Personagem maior de cada fábula naturalista.
Escuta o silêncio do mundo natural...
Este post-universo, vácuo e esgotado,
Tamanho nada, metafísica ausência!
Todas as coisas fingindo mover-se...


Imagem de www.medievalcottage.com.

quinta-feira, maio 18, 2006

Lágrimas primordiais


As lágrimas honestas do amor maior,
Rios salgados de esperanças batidas,
Altíssimas cascatas atiradas contra
Uma velha barragem ressequida,
Talvez se destinem à evaporação...
São, no entanto, um dilúvio babilónico
Por não ter uma arca para te acolher.


Imagem de www.cjonline.com.

quarta-feira, maio 17, 2006

Tóxico


Eis-me intensamente morto,
A morte espástica, atarantada,
Estranho fantasma em carne viva,
Mortificado, amortalhado,
De tanto activismo e spleen existencial!
Ensinem-me a poesia bonita,
A prosa leve e comercial,
De cujos céus azul-pintados
Não pende qualquer mancha insuspeitada!
Ensinem-me a sorrir sem ironia,
A gargalhar sem ponta de sarcasmo!
Sou um tufão prenunciador de trovoadas,
Tempestades nulas, secas, sempre por haver,
Um armazém industrial de trechos de Beethoven,
Pré-orgasmo inconclusivo made in lá-lá-lá!
Apetece-me exclamar a vida inteira...
Mau gosto estético? Tomem, por favor:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Que alívio tão momentâneo...
Rodeiam-me toneladas de cubos de pizza
E o corpo, insensato, a recusar!
Só quero chutos de inocência,
Snifs serenos de normalidade,
Vícios saudáveis do não querer saber.
Saber dói como uma amputação do sentir...
Vem nos jornais, revistas e campanhas de prevenção
E não entendo como caí na armadilha de reflectir...


Imagens de www.flonnet.com e www.huntel.net.

segunda-feira, maio 15, 2006

Díptico Tulliano


People, what have you done?
Locked Him in His golden cage,
Golden cage.
Made Him bend to your religion,
Him ressurected from the grave,
From the grave.
He's the God of nothing
If that's all that you can see.
You are the God of everything,
He's inside you and me.
(Ian Anderson)



No lusco-fusco vítreo, cerebral,
Entre madeiras carcomidas, sanguinolentas,
Santo de santo de santo,
Repete-se a velha lengalenga longa,
O anti-mantra anti-musical,
Por minha culpa, minha tão grande culpa.
Ajoelham-se ante ídolos da inércia
E bebem o espírito santo
Em alucinações caladas de pecados mortais.
Já te benzeste, meu filhinho?
Os anjos choram sangue sobre os campos
Alagados de tanto suor inútil!



In the shuffling madness
Of the locomotive breath
Runs the all-time loser
Head long to his death.
Oh he feels the pistons scraping,
Steam breaking on his brow.
Old Charlie stole the handle
And the train won't stop going,
No way to slow down.
(Ian Anderson)



Tombo tão lentamente entre reflexos,
Na minha dança amarela, desmaiada,
Tão lento, lento vou nesta curta queda longa,
Triturado na espiral mecânica natural!
Todos partiram para invernos desconhecidos
E eu, balouçando ao vento uivante e metalóide
Sob o céu ignobilmente branco,
Imerso no silêncio absoluto outonal...
Já te benzeste, meu filhinho?
Já. Mas as nuvens calam a passagem.



Imagem de www.flickr.com (foto original de cobalt femme)

sábado, maio 13, 2006

Poema do desamor apátrida

BAÚ DE MEMÓRIAS


Flirtando ausências sólidas ao lado
No poço cá do espelho, feito um destroço
Estatelado contra as costas corcundas
De um velho magro, de ideias fundas
"Tenho oitocentos anos", diz
E quem te quer descrer? Bon... Well...
E crescem-lhe verrugas no nariz
Quando inventa Adamastores de papel
Sólida tristeza traz no dorso
Feita infantilidade, dor e esforço
O gigantone anão, o carregador
De vagas emoções de desamor
E eu flirto só comigo e só com ele
Ardendo na fogueira que me assa a pele

16 de Fevereiro de 1996


Imagem de www.educom.pt (original: retrato de Camões).

quinta-feira, maio 11, 2006

Quem me dera o que não dera...


Quem me dera no tempo de Pessoa,
Quando as coisas aparentavam simplicidade
E se não se ganhavam prémios e louvores
Podiam compreender-se os motivos,
Podiam, pelo menos, compreender-se os motivos!
Quem me dera no tempo de Baudelaire,
Quando as coisas aparentavam simplicidade
E se não se ganhavam prémios e louvores
Era por se ter adormecido sobre o absinto
E os prémios e louvores eram para burgueses!
Quem me dera no tempo de Shakespeare,
Quando as coisas aparentavam simplicidade
E se não se ganhavam prémios e louvores
Era por não haver ainda semelhantes coisas,
Mas recebiam-se favores de damas enfastiadas,
Recebiam-se, ao menos, os seus favores!
Quem me dera no fundo escuro de uma gruta,
Pintando heroicamente cavalos e bisontes,
Pintando-os, molhando-os em sangue de animais,
Sem prémios e louvores, sequer, no vocabulário estreito!
Quem me dera fora do tempo e de tudo...
Quem me dera, francamente, não querer...


Imagem de http://witcombe.sbc.edu.

segunda-feira, maio 08, 2006

O desfastio do poder


Acordei hoje,
Ontem e sempre,
Sempre cedo demais,
Morto de desfastio.
Outros têm enxaquecas existenciais.
Outros podem acordar tardiamente.
Outros, limitam-se a viver.
Eu tenho esta enxaqueca de mandar,
Este cansaço oculto e permanente
E alguém vai ter que pagar.


Imagem de www.univ-tours.fr (túmulo de Richelieu).

sábado, maio 06, 2006

Para o Alexandre

BAÚ DE MEMÓRIAS


Tu és o sol que me rega de esperança
De chuva da vida brotando em torrente
Com o teu brilho intenso de criança
Onde hoje me revejo antigamente

São espelhos os teus olhos de diamante
Fitando para lá de onde pareço estar
Rompendo aquém e além do presente
Na tela que ambos somos a pintar

E improvisas abstracções de cores quentes
Obrigando-me a um contínuo retocar
Da minha paleta de tons indolentes

E quando não estás, ouço-te cantar
Belas monocordias sempre diferentes -
"Pa-pa-pa-pa" - no tempo a passar...

24 de Fevereiro de 2000

...


E os países sem café?
E as cidades sem cigarros?
E as casas sem mobílias?
E os tapetes sem cotão?
E os universos sem chão?
E os pontos sem interrogação?
E os versos só porque não?

sexta-feira, maio 05, 2006

Pearl's a singer


Pearl's a singer
And she sings
O noticiário
E a meteorologia
E o trânsito também
In a nightclub
Vem a crise
A declaração
A deflagração
Dreaming of dreams
That never came true
Bzzzzzz... say she once
Cut a record
E etc. etc. etc.
Que tristonhos estes dias,
Tão longos, tão arrastados...
Não quero estar com ninguém.
Eu mesmo sinto-me a mais.
Tenho a cabeça a estourar
De memórias misturadas,
Tanta gente, tantos mortos,
E os vivos, como que mortos,
Tanta vontade contida
De encher folhas inteiras
Com pontos de exclamação...
Tão tristes, os dias de sol,
Como chuvas disfarçadas,
Como raios de aguaceiros,
Como dias cangalheiros...
Pearl's a singer
E o resto já se sabe
Ou não sabe e é igual.


Título original de Elkie Brooks. Imagem de www.custommonkey.org.

quinta-feira, maio 04, 2006

Porque choras a solidão?


Porque choras a solidão?
Não há quem não seja só.
Não há quem não monologue.
Julgas estar acompanhado
Por quem te rodeia e odeia,
Por quem te deseja e abraça?
A lua está só no céu,
As galáxias, Deus também...
Ouves as pedras gemer?
Escutas queixas dos cometas?
Cada percurso é exclusivo,
Pouco importa se o universo
É feito da mesma massa.
Porque a choras, então?
Só ela nunca te deixa,
Só ela sempre te abraça,
Nas multidões e nos ermos.
Ri-te com ela e dela,
Só ela é certa na vida...
Nada mais podes fazer.


Imagem de www.webshots.com (foto de Kennan Ward).

O eco dos meus sapatos


Escuta, se assim te apraz, o eco dos meus sapatos,
Velhos, gastos, usados, os meus sapatos...
Sapateiam toneladas,
Os meus sapatos baratos,
Os meus sapatos fantasmas!
Vê que pesado percurso
Percorrem os meus sapatos,
No cimento tão intacto
Como não deixam pegadas...
É noite em todas as ruas,
É noite em todos os campos,
É noite em todas as luas,
No uivo de todos os astros
E os cães chamando a desgraça
Nos becos e nos portões...
O eco dos meus sapatos...
Escuta-o, mas não te detenhas.
Não te transformes em sal.
Um dia, de tal caminhar,
Gastam-se os ecos e as solas,
Gastam-se até as memórias...
Que memórias? Que se gasta?
E os sapatos a ecoar
A sombra de quem se não vê...


Imagem de www.artist-doug-carpenter.i12.com (tela de Van Gogh).

quarta-feira, maio 03, 2006

Capitalism stole my virginity


Fábricas ao longe, na distância, na têvê
Máquinas rugidoras, dia e noite, o ram-ram
Autómatos zoadores, noite e dia, o ram-ram
E o sol brilha no escuro, tão discreto e arrogante
Fábricas ao longe, um mendigo numa esquina
E o homem de sucesso, o que sabe o que é que é
Fábricas ao longe, na distância, na têvê
Ruidosas, malcheirosas, geradoras, produtivas
E o homem de sucesso nunca esteve numa usina
Só viaja de avião, decide em tele-conferência
Critica a nossa preguiça para as notas da imprensa
Os que ficam para trás, a quem só resta o passado
E os que nos auto-destroem por só verem um passado
E os mendigos e os outros, assacados de vergonha
E os cegos e iludidos, todos deslocalizados
Não há mais revoluções, clama o homem com orgulho
Sente-se dono da história como de um mastim de guarda
Fábricas ao longe, na distância, na têvê
E ninguém é inocente, nem o carrasco que aguarda


Título original dos The (International) Noise Conspiracy.
Imagem de
www.pbase.com (foto de Gayle).

segunda-feira, maio 01, 2006

Primeiro de Maio


O sol brilha sobre o primeiro de Maio,
Sobre as praias, estradas, hipermercados encerrados,
Brilha além da sombra, que eu sei,
Sobre os exploradores e os trabalhadores,
Brilha até sobre um exemplar de O Capital
Se alguém o deixar esquecido a céu aberto...
Estamos na época dele, não é?
Dir-se-ia... Ainda ninguém criou um imposto sobre o sol.


Imagem de www.riti.com.

Encontro com o coiso


Não me dei ao trabalho
De colocar maias nas janelas.
Quando regressar a casa
Encontrarei, provavelmente,
Um sósia ou clone de Mr. de Niro,
Mãos em leque diante da barbicha,
Perna cruzada e sorriso vagamente misterioso.
Vim buscar a tua alma,
Dir-me-á, cheio de certezas.
A alma? Já saiu na Scientific American?
Cerrará as sobrancelhas e fará um gesto de mão:
Vá! Faz o favor de te assustares!
Sou o demo! O anjo irado! O mestre dos dias escuros!

Poderei, então, assustar-me um pouco. Se me apetecer...
Trazes algum documento oficial? Trata-se de uma coima?
Não puseste maias nas janelas, soletrar-me-á.
Olha, deixa-te de histórias e bebe antes um copo,
Fuma um cigarro, conversa um bocadinho...
A eternidade é longa e podes-te aborrecer.
Olharei para o relógio e explicarei pacientemente:
Já estamos no século XXI.
Ainda acabo a ter de o consolar, limpar-lhe umas lágrimas rebeldes...
Sabes? Tenho a certeza que sabes ser insuportável...
Não duvido que ainda consigas atormentar uns quantos maus.
Ele olhar-me-á com uma candura que o deixará embaraçado:
Achas mesmo? Não estou decadente, um pobre diabo?
Então, colocando-lhe a mão sobre o ombro, dir-lhe-ei:
Não. Só tens que procurar nos sítios certos.
Moderniza-te, informatiza-te, faz um estudo de mercado!


Imagem original de www.dvdessential.it.

Brinquedos abandonados


Não é dramático, mas a cangalhada,
Bugigangada, pedaço da infância encaixotada,
Perdeu-se numa garagem atapetada de fungalhada
E se alguém me ralhou, já me esqueci...
O sol pôs-se e não o vi.
Nasceu, de manhã, quando dormia,
E recordo-o como um filme
Cujas cores começam a desbotar.
Nasce e põe-se no céu intemporal.
Cartas de jogar cobrem quadrados do passeio,
Anárquicas nas suas posições contorcionistas...
A vida é um jogo. Não queres jogar?
Muito honestamente? Prefiro dormitar.


Imagem original de www.speakeasy.org.
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