domingo, junho 18, 2023
... o que é absolutamente inominável. Mas seja, cada um diverte-se à sua maneira.
Recebi a seguinte comunicação do Blogger, relativa a três poemas: Osama, de Joaquim Camarinha, meu antigo heterónimo (15/02/2006), Quarta-feira de cinzas (19/04/2006) e De que serve a primavera: "Como você sabe, as diretrizes da comunidade delimitam o que é permitido e
proibido no Blogger. Sua postagem com o título xxxxx foi sinalizada para revisão. Concluímos que ela viola as diretrizes e
cancelamos a publicação do URL xxxxx , que
está indisponível para os leitores. Por que cancelamos a publicação da postagem do seu blog?
Seu conteúdo violou nossa política contra malware e vírus. Acesse a
página "Diretrizes da comunidade" vinculada a este e-mail para saber mais."
Como não tenho disponibilidade para andar a deslindar que diabo se passa com esses urls, republico os três poemas em causa de seguida:
Osama (de Joaquim Camarinha)
Os bandidos de uns são os heróis de outros
E, conta-me a experiência, heróis e bandidos
São todos recordados como desenhos animados
- onde fica o ser humano e o que pretendeu ser?
O pó da terra mistura-se, um dia, ao vento do grande deserto
Que encontra o seu caminho por entre narinas apáticas
E se afunda, enfim, no lenço, no saco, no contentor...
Escolheste o teu caminho, se escolheste,
Se alguém chega a escolher alguma coisa,
E foste terminar-te numa imensa cratera estéril...
Sobre ela move-se o universo indiferente
E o vento estelar engolindo todas as pegadas.
Quarta-feira de cinzas
Hoje é quarta-feira de cinzas
Sem ser quarta-feira de cinzas,
Pelas cinzas de todos os cigarros,
Pelas cinzas das braseiras do passado,
Pelas cinzas que volteiam pela curva temporal...
Nas ruas, em dias de cinzas,
Não há rectas nem espirais.
Somente rasgos de tintas
Que escorregam além-telas,
Enganam os deuses à passagem,
Perpassam os olhares das deusas
Que nunca parem fins nem princípios.
Belíssimo caos da anarquia natural,
Tão bem oculto por pinturas indeléveis!
Vejo-os felizes, infelizes, indiferentes, enganados,
Convictos de que os relógios marcam horas concretas,
De que Deus zela por cada livre-arbítrio,
Certos da ordem, que é a maior das excentricidades...
Amanhã visitarei a minha sepultura abandonada
Onde jazem todas as ilusões, todos os projectos,
Lançarei ao ar as minhas cinzas em slow motion
E deixar-me-ei submergir por essa chuva suave...
Hoje é quarta-feira de cinzas
E, amanhã, quarta-feira uma vez mais.
De que serve a primavera
De que serve a primavera,
O canto das aves canoras,
Se tudo em mim degenera,
Se em mim se arrastam as horas?
Se os raios solares me encandeiam
Como lanças do divino
Quando os campos se incendeiam,
De que serve o sol a pino?
Tudo é lento e arrastado,
Reflexos, o tempo parado,
Artificialmente triste...
E nada efectivamente existe.
Ouço-os rir, conversar,
E eu, alma penada a pairar...
sexta-feira, março 24, 2023
Sei lá o que os outros pensam
Sei lá o que os outros pensam
Quando olham na distância
Ou perto ou a meio caminho
Quando encerram a vista
E não se vê o olhar
Ou o olhar se dissipa
Sei lá o que lhes vai dentro
E que me importa saber
São cores das mais variadas
Ou tons de cinzentos vários
O olhar voltado em si
Ou fixo no que elas veem
Sei lá o que as confunde
Sei lá o que as garante
Por momentâneo que seja
Um olhar de viajante
Tão cercano ou tão distante
Imagem de: eBiografia.com
quarta-feira, março 22, 2023
Preguiça
A preguiça enrosca a hora
Nos ramos da densidão
Que tombam em lentidão
Como sonhos vida fora
E o musgo abraça o olhar
Que desliza noutros mundos
Em sonhos vívidos, fundos
Como a alma a passear
Preguiça, gémea do mato
Que alguma luz perpassa
Da cor que uma ilusão faça
Viver bem no seu recato
Quero apenas descansar
Lentificando a erosão
Com a tua suave ilusão
Que me ensina a despertar
Imagem de: Depositphotos
sexta-feira, dezembro 30, 2022
sexta-feira, julho 08, 2022
Flor do areal
Pequena flor silvestre entre as daninhas
Enfrentando ondas e as dunas refletoras
Onde andas, como cresces, a que horas
Esqueces os relógios e jamais definhas
És perene, sobes, curvas no azul
Que te banha de luminosidades
Longe dos tons foscos das cidades
Fazes do teu norte um claro sul
És a vida que as pétalas inalam
Doces, e alegre, fitando o horizonte
Desde os rumores suaves a Orionte
Tens inspirações que me embalam
Imagem de: Pinterest
quinta-feira, junho 02, 2022
segunda-feira, abril 11, 2022
As gotas
Se as gotas tombassem suaves
Pingo a pingo sobre a fronte
Nas têmporas como num rio
Certas retas como um fio
Aspirinas do horizonte
Flutuantes como aves
Se as gotas pingassem lentas
Refrescariam as almas
Os cérebros tonitruantes
Os nervos tensos e intensos
Como humedecidos lenços
Em termómetros escaldantes
Medindo jornadas calmas
As gotas como águas bentas
Para quê dores de cabeça
Nervosas prosas com rima
Para quê qual o interesse
Porque a vida não carece
De obra-irmã ou obra-prima
Só da vida que aconteça
Imagem de: Wikipedia
quinta-feira, março 24, 2022
Uma curiosidade (enxurrada de visitas)...
A curiosidade é que são, neste momento, 14:04 horas em Portugal Continental, e que, depois de, ontem, ter publicado um poema chamado A Guerra, contei, hoje, até ao momento, com um total de 492 visitas dos Estados Unidos. Eu acho engraçado.
Acharia, claro, mais engraçado, mais positivo, se tal se devesse a um forte interesse pela minha poesia. E seria bom que tivessem capacidade de entender o que escrevo, entre bots e não-bots. Não sendo assim, paciência. São mais 492 visitas.
Imagem de: alensa.pt
quarta-feira, março 23, 2022
A guerra
Não há eufemismos viáveis para a guerra
Onomatopeias para o zunir dos canhões
Metáforas para o solo vermelho ensopado
A terra aplanada de lama esmagada
As sombras e manchas nos edifícios
Tudo rebentado, tudo orifícios
Não há eufemismos, não há artifícios
E as vozes erguidas em dor e revolta
Enquanto os senhores ordenam espaços
Em amplos salões, com mapas e passos
E a gente resiste, e a gente persiste
E a cegueira entaipa o mundo de vendas
Nos mercados negros, cobiças e lendas
Quero crer que há poços não de combustível
Mas de enxofre quente, fundo e insensível
E que o choro e a raiva, hoje emudecidos
Temíveis correntes do mundo invisível
Calarão as vozes dos embrutecidos
Imagem de: US Money Reserve
quarta-feira, fevereiro 23, 2022
Balada do populista
Deixas o carro de compras no caminho
Lanças a máscara ao passeio, à via
Junto ao dejeto de um cão de companhia
E a um vómito cheiroso e cor de vinho
Buzinas longamente pelas pistas
Tens pressa e não sabes onde vais
Mal entras, imaginas como sais
E encontras o caminho nos fascistas
Quererás tu tropeçar no artifício
Respirar o interior da tosse alheia
Escorregar no odor que incendeia
Beber a podridão de cada vício
Queres ordem, exigência, novas vistas
Vociferas e gargalhas como um louco
E se essa raiva intensa ainda é pouco
Encontras quem não sabes nos fascistas
Imagem de: WETM
terça-feira, janeiro 11, 2022
Valsa da ausência de imaginação
Pairava ainda ontem, na noite caída
Como uma cortina cinza de veludo
Uma névoa densa, de aspeto sisudo
Que moldava a mente e a breve avenida
Dentro do automóvel, fora da atenção
Pensei lentamente para com o meu volante
Que a névoa de gelo, gotícula errante
Se me esfiapava pela imaginação
Imagem de: Wikipedia
sexta-feira, dezembro 24, 2021
terça-feira, dezembro 07, 2021
Chove na rua empedrada
Chove na rua empedrada
Como se a pedra chovesse
É triste e desconfortável
Frio e quase miserável
Como se o mundo bebesse
De forma desenfreada
Mas não me chove na alma
Não tenho paredes greladas
Nem corredores com humidade
O tempo cobre a cidade
De ideias desvinculadas
E flui em regos que espalma
Imagem de: KRON4
terça-feira, novembro 30, 2021
Manifestação
Vou organizar uma demonstração
Pela eternidade do tempo de verão
Bater nos tambores, nos muros, no chão
Inventar palavras de exclamação
Explodindo a areia e moendo o grão
Que rebenta vagas contra um paredão
No tempo de estio, sol de furacão
Ensaiar protestos numa canção
Fixando a atmosfera num sonho de verão
Na noite estrelada onde os grilos estão
Junto a um riacho, no verde de um vão
Rebentar de paz mente e coração
Descansar no fundo de uma impressão
Imagem de: ABC7 New York
domingo, novembro 07, 2021
Big Bang, Big Band
Talvez seja hora do recolhimento
Escutem, estrelas velhas desse firmamento
Ruído fantasma que trespassa o espaço
Recurvando o tempo e encurtando o passo
Tudo passa e parte, naves de ilusões
Pelos sons do cosmos, imagens, canções
Talvez seja altura de o peso vencer
Não é grave a idade, apenas viver
O que é velho arrasta, o que é novo gasta
E é naturalmente coisa iconoclasta
Talvez pouco reste porque é sempre assim
E seja um princípio, princípio do fim
Imagem de: Ivey Business Journal
segunda-feira, novembro 01, 2021
Os mortos, os vivos e o que aparenta
Ninguém jamais regressa de onde vai
Nem do passado, tempo enevoado
Em tons estranhos, feel ensolarado
Mesmo ninguém, nem mãe, nem pai
Fazem as religiões de velas, flores
E sangue, muito sangue nas imagens
Como vinho misterioso de miragens
Pão metafísico, vagos descritores
E a vida corre no que sempre passa
Olhares perdidos pelos cemitérios
Por terra caídos como vãos impérios
E ainda incensórios de graça e desgraça
No fim, seja duro ou mole
Cabe tudo em Deus, a idade
O tempo da relatividade
E adeus, que a física engole
Imagem de: Public Domain Pictures
terça-feira, outubro 26, 2021
As plantas
Agradeço o mundo às plantas
Olho-as lento e agradeço
Por estarem no ecossistema
No meu cérebro e nos pulmões
No coração bombeante
Na sensação do universo
De graça no ecossistema
Pedindo nada em retorno
Exigindo coisa alguma
Vivem da terra e da chuva
Não ladram, não uivam, não mordem
Não debatem, não protestam
Balouçam na brisa gentil
Existem por existir
Na base da existência inteira
Verdes, vermelhas e pardas
Florindo e frutificando
Parecem estar desde sempre
Em meditação constante
Inspirando e expirando
Todo o universo aparente
As plantas de porte frondoso
Como um deus calmo e bondoso
Imagem de: Ambius
segunda-feira, outubro 18, 2021
Outono
As folhas douradas do outono
Tremolem como um violino
Ou vibram em metal fino
Som monótono ou monotono
Que fortíssimo atonal
Quisera eu transportar
As palavras e o rimar
Para um conjunto orquestral
Átomos fariam explodir
Pianas as folhas no chão
Crescendo entre a mornidão
Da atmosfera a retinir
As nuvens dançando no ar
Timbalariam as mentes
Com cores frias de tons quentes
Luz do grand finalizar
Imagem de: iStock
quarta-feira, outubro 13, 2021
Nostalgias
Nostalgia do passado
Nostalgia do futuro
Guardem as nostalgias
Como velhas letargias
Ou um sonho prematuro
Numa gaveta arrumado
Que é já tarde e vou dormir
É já cedo e hora da sesta
Guardem todos esses sonhos
Alegres e enfadonhos
E não deixem qualquer fresta
Onde a luz possa bulir
O presente é fugidio
Mas é nele que nos movemos
E é só nele que existimos
Memórias que consentimos
De coisas que não vivemos
São sombras de um olhar tardio
Imagem de: Dana Education Group
sábado, outubro 02, 2021
Por que porque porquê
Tocam os judeus violino
E Sherlock Holmes usa lupa
A água cai em catadupa
E o sol inflama-se a pino
Tocam os pretos batuque
Livingstone usa chapéu
Cataratas são um véu
Horizontes são um truque
Tocam os índios tambores
Os cowboys são sempre os bons
E o que se ouve não são sons
Mas impressões como cores
Tocam os brancos piano
E usam casaco e gravata
Saúdam o aristocrata
E agem segundo um plano
Amarelos dão-se ares
Diz-se que comem insetos
E pensamentos concretos
E ideias milenares
Não sei porquê a assunção
Talvez eu visse uma tela
Ou um filme ou uma novela
Ficou-me a interrogação
Imagem de: maestrovirtuale.com
terça-feira, setembro 21, 2021
Viagem
Vou partir num sopro leve até ao topo do Evereste
E sentir o vento frio nas praças de Budapeste
Beber uma piña colada nalguma estrada cubana
Enquanto deslizo com o Nilo até à selva africana
Juntar-me a ti no areal tão longo de Porto Santo
E chegar à Terra Santa escutando rumores de Esperanto
Atravessar a Austrália inteira e aterrar em Pequim
Num deserto de saguaros onde o céu cai sobre mim
Embrenhar-me nas ruínas de mil civilizações
Onde o tempo é sempre ameno e a brisa trauteia canções
Ver o barroco do sul e calcorrear as pampas
Até às falésias geladas desenhadas como estampas
Tombar em hipotermia num estranho sonho que diz
Que partilho um absinto com Hemingway em Paris
Jantar opulentamente à mesa de um marajá
E despertar sorridente no azul do meu sofá
Imagem de: emotionportugal.com
segunda-feira, setembro 13, 2021
A capital
A capital, palacetes e casebres
Torres de ouro debruçadas sobre o rio
Descentradas do humilde casario
Outras torres empinadas sobre os morros
Os pedantes bares da moda, discotecas
Casinos e os tristes salões de bingo
Os fados que encandeiam os artistas
Os taxistas que entontecem os turistas
O zum-zum atarefado e circular
Restaurantes, bares, cafés, pastelarias
Ladrilhados gordurosos da calçada
Assembleias e castelos de enxurrada
As buzinas ecoando entre os ruídos
Terramotos e eventos distraídos
As memórias distorcidas das infâncias
Largas barras que se perdem nas distâncias
Os museus e os becos poluídos
Monumentos com os muros tão polidos
O imaginário errante das estâncias
Imagem de: JM Madeira
quinta-feira, setembro 09, 2021
Incomunicabilidade 2 (ao meu pai)
Os poemas devem, por norma, permanecer abertos a todas as polissemias, mais ou menos acertadas ou delirantes, bem sei. A partir do momento em que a criação se oferece ao público, passa, de algum modo, a pertencer-lhe (os mais radicais dirão que passa a pertencer-lhe por inteiro, o que é engraçado, porque equivale a um pai atirar os seus filhos para o mundo e não ter mais coisa nenhuma a dizer-lhes, ou acerca deles).
Vou abrir uma exceção...
Teria, penso, 17 anos, quando escrevi um conjunto de tentativas de poemas. Não eram poemas, que a poesia exige... poesia. Enfim, arte poética.
Certo é que o meu pai, naturalmente porque gostava de mim como acho que um pai deve gostar de um filho, inclusive nas idades mais complicadas, viu poesia nas minhas tentativas de poesia. E decidiu oferecer-me um pequeno livro. Recordo-me de o ver mostrar a pessoas próximas um dos meus esboços, a que chamei Incomunicabilidade (sobretudo porque me soou bem) e que, continuo a não entender como, os consegui enganar a todos - repito: não sei como, não foi exatamente intencional; em determinadas alturas da vida, as coisas simplesmente pairam de forma confusamente intuitiva.
Esse livro foi composto na tipografia da Casa do Gaiato, acho eu, e materializado com capa dura de papel couché.
O meu pai faleceu demasiado prematuramente, em 1981. Este poema (finalmente!), recorda-o, recorda-nos e constitui um pobre agradecimento meu pela riqueza do seu amor.
Mero vocábulo sonante
Perdido nas asas dos dias
Que achaste que entendias
E o sol derretia, distante
Não chegava a ser poesia
Era apenas tatear
Mas levou-te a acreditar
Em mim e no que dizia
Incomunicabilidade
Soubera comunicar
Contigo, pai, a pairar
No azul da eternidade
terça-feira, agosto 31, 2021
A vespa
A vespa zune numa elipse tonta
Protegendo o ninho de ilusão
Onde guarda cuspo e papelão
E a espada de veneno e proteção
Que ameaça o dia e o afronta
Para que servem vespa e presa
A mosca, o mosquito, a pulga, a aranha
O território, a terra, a pátria estranha
O lar, o olhar, o respirar, a artimanha
Se tudo é ilusório e sem surpresa
Imagem de: Wikipedia
segunda-feira, agosto 23, 2021
Entrega
Creio que o Senhor tem os seus caminhos
Por entre desertos e florestas densas
Galáxias de luz, negridões extensas
Cidades terrestres cobertas de espinhos
Creio mal valer o que possa crer
Nervos diluídos de ordens neuronais
Ora aqui felizes, ora ali fatais
Embrulhado em sonhos, tenso de viver
Deveria, acho, entregar-me inteiro
Ao que aparenta, que talvez exista
E ser satisfeito, sem pontos de vista
Mero grão de areia, sereno cordeiro
Aceitar o espinho que nasce com a rosa
Pois é natural, só eu o não sou
Cortar a raiz que se ressecou
Regar-me de paz doce ou ardorosa
Imagem de: Wikipedia
quarta-feira, agosto 18, 2021
I hear dead people
Áudio, vídeo, texto, real virtual
O círculo rodou no cosmos em mim
Suave ventania sem início ou fim
Brilho de existência e eu ser orbital
Diariamente os ouço como que presentes
Tocando instrumentos, contando-me histórias
No advir exaurido de luz e memórias
Científica dúvida de sopros ausentes
Diariamente falo e ao falar converso
Com desconhecidos que invadem o mundo
Na casa que ocupo, no sofá que afundo
Vivos no eterno, no sol, no universo
Imagem de: Pitchfork
quinta-feira, julho 08, 2021
Dia
As nuvens deslizam pelo céu sem nuvens
Como havendo o inefável e o inenarrável
E as ondas que embatem nas costas da mente
Que pensa e dispensa simultaneamente
E pausa e agita e estando é instável
Em universos velhos de galáxias jovens
Que dia rebrilha e que vento venta
Tudo são imagens de som e de cor
E tempos abstratos numa tela cheia
Raios embrulhados como numa teia
Do muito pequeno ao muito maior
Todas as coisas que o cosmos inventa
Imagem de: www.blueskybio.co.uk
segunda-feira, junho 07, 2021
Arrábida
A Arrábida é o Porto
A ponte vista da Foz
Traçada frente ao Palácio
Esquissada de Miragaia
Aos sóis nascente e poente
Sob os raios do meio-dia
A Arrábida que o guia
Em direção a si mesmo
O Porto de outros dias
De hoje e do amanhã
A Arrábida e o movimento
E eu sou criança na ponte
Usando os elevadores
Olhando-a encostado a um muro
Qual promessa de futuro
Sobre as águas rebrilhantes
Dos verões que se aproximam
E dão lugar a invernos
E as águas redemoinham
E o gelo cai sobre a ponte
Que é em si toda a cidade
E memórias sem idade
Imagem de: Wikimedia Commons
segunda-feira, maio 31, 2021
Circularidade
Detesto os cães a uivar
Como desdenho as touradas
E as bestas que por nadas
Galopam para atacar
A rua que não é minha
Não pertence a ser nenhum
Como o mundo que é só um
E só gira até ao fim da linha
Tive em tempos uma rua
De boas e más memórias
No tempo em que havia histórias
E mundos além da lua
Hoje tenho cães uivantes
E ponteiros a rodar
E vontade de os matar
E razões para os deixar
Com os seus olhares divagantes
Há horizontes nas mentes
Em tic-tacs circulares
De ideias solares e lunares
Que enchem de coisas os ares
Todas iguais e diferentes
Imagem de: Newsweek
sexta-feira, maio 21, 2021
Deus é amor
Deus é amor, é esse o discurso.
E nós, pobrezitos, não compreendemos
A história de Job e tudo o que lemos
Lázaro violentado e tudo o que vemos
A maçã vedada por quem tudo sabe
Figueira castrada contra a natureza
Abraão mandado trucidar o filho
Divisão dos homens, na torre, em Babel
Tudo e todos mortos, raiva do Dilúvio
Lot feita sal por um mero olhar
Poeira louvada no Final Juízo
A crucificação, São Sebastião
A dor que perpassa e o Senhor tão quedo
Mudo, silencioso, gritante de nada
Na Inquisição e em cada cruzada
Não compreendemos, Moisés, Deus, a Fogueira
O povo escolhido, povo preterido
Tão estranhos desígnios de fé e cegueira
Imagem de: Tate Gallery (William Turner)
quinta-feira, abril 22, 2021
Poeira do deserto
Os caracóis são pisados e enganchados
As lesmas esmagadas, liquefeitas
As pessoas feitas caminhar direitas
Os pescoços das gazelas são quebrados
É um redemoinho neuronal de criatividade
Em queda livre: poços espaciotemporais
E tudo é pó, as coisas vivas, naturais
Pó do deserto, cada grão uma igualdade
Na igreja diz-se bondade, missa, justiça
Nas assembleias o planeta é protegido
Nos discursos ninguém é preterido
E é uma mistura de ação e de preguiça
Imagem de: InfoEscola
quarta-feira, abril 07, 2021
Elegia violenta do idiota
Passa, corre, foge e ultrapassa
Num fogacho a arder, ser de corisco
Buzinas a estrondar, riscado disco
E cruza resvés a gente lassa
Que não passa, que se atrasa no sinal
És motor, estertor, carburador
Ronco e raiva de tempo cortador
Tudo revoa nessa cruzada final
Jazes agora num circuito morto
Poder torto, rumo nenhum, nem porto
Imagem de: Aldergrove Star
segunda-feira, março 08, 2021
Na caverna
A vida paira com a morte
Como a sorte com o azar
E o luar com a luz solar
Sul, leste, oeste e o norte
Nada imagino de nada
Ainda que imerso no lodo
Que não entendo de todo
Miragem entrelaçada
O que algo é, desconheço
Incapaz de compreender
Em cavernas de não ver
As alegorias que teço
Se existo? Devo existir
Na marca do próprio verso
No tempo e no seu reverso
No pensar com o sentir
Vivo no sono acordado
Como um ruído lá fora
Que se apressa e se demora
E que indica nenhum lado
Imagem de: Medium
domingo, fevereiro 21, 2021
Aves em bandos
As aves que voam em bandos
Sobre os lagos e os telhados
Sob o sol e os céus pesados
Fazem os dias mais brandos
Como um tempo mal visível
Alucinações felizes
Iluminações, raízes
Que tornam o dia credível
Vejo-as de olhos cerrados
Rasgando o azul e a psique
As aves que caem a pique
Erguem-se em significados
Imagem de: All About Birds
terça-feira, fevereiro 16, 2021
Avenida (a Rita Lee)
Percorro a Avenida Paulista
Onde nunca estou nem estive
Em lugares por onde vive
A tribo ripi sambista
O sol trespassa o cimento
Imaginário e concreto
Como uma nota no teto
Escrita num caractere lento
Paulista avenida sacada
Do peito como um punhal
Num ano sem carnaval
E a garoa cobre a estrada
E a vida encobre o sonhar
Dos poetas em estertor
Talvez num mundo melhor
Talvez num mundo a passar
Quiçá quiçá prevenir
Retirar o corpo e a mente
Seja um ato ebuliente
Da alma que voga a fluir
Imagem de: São Paulo São
quinta-feira, fevereiro 04, 2021
Conímbriga
Em Conímbriga, entre ruínas
O vento corta o sol e a chuva
E a imagem numa névoa turva
Que escorre por camadas finas
Em mosaicos e calcários desbotados
Confundindo a vida tão provinciana
E lenta, longe a serra lusitana
A infância e os seus dias transformados
Dias longos e serenos, silenciosos
Nos confins, a aventura de nada fazer
E tudo nada ser, mas parecer
Que há algo entre rumores misteriosos
Pequeno e carcomido, esse viver passado
Em caldos de ADN, sangue na terra
Nos quintos que esse império encerra
Em mesas da primária e som calado
Por lá andámos em visita
Pequena a área, céu de imensidão
E tudo se confunde na razão
E instinto da vida finita
Imagem de: aeiou