quinta-feira, setembro 09, 2021

Incomunicabilidade 2 (ao meu pai)


Os poemas devem, por norma, permanecer abertos a todas as polissemias, mais ou menos acertadas ou delirantes, bem sei. A partir do momento em que a criação se oferece ao público, passa, de algum modo, a pertencer-lhe (os mais radicais dirão que passa a pertencer-lhe por inteiro, o que é engraçado, porque equivale a um pai atirar os seus filhos para o mundo e não ter mais coisa nenhuma a dizer-lhes, ou acerca deles).
Vou abrir uma exceção...
Teria, penso, 17 anos, quando escrevi um conjunto de tentativas de poemas. Não eram poemas, que a poesia exige... poesia. Enfim, arte poética. 
Certo é que o meu pai, naturalmente porque gostava de mim como acho que um pai deve gostar de um filho, inclusive nas idades mais complicadas, viu poesia nas minhas tentativas de poesia. E decidiu oferecer-me um pequeno livro. Recordo-me de o ver mostrar a pessoas próximas um dos meus esboços, a que chamei Incomunicabilidade (sobretudo porque me soou bem) e que, continuo a não entender como, os consegui enganar a todos - repito: não sei como, não foi exatamente intencional; em determinadas alturas da vida, as coisas simplesmente pairam de forma confusamente intuitiva.
Esse livro foi composto na tipografia da Casa do Gaiato, acho eu, e materializado com capa dura de papel couché.
O meu pai faleceu demasiado prematuramente, em 1981. Este poema (finalmente!), recorda-o, recorda-nos e constitui um pobre agradecimento meu pela riqueza do seu amor.

Mero vocábulo sonante
Perdido nas asas dos dias
Que achaste que entendias
E o sol derretia, distante

Não chegava a ser poesia
Era apenas tatear
Mas levou-te a acreditar
Em mim e no que dizia

Incomunicabilidade
Soubera comunicar
Contigo, pai, a pairar
No azul da eternidade

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