domingo, junho 18, 2023

Alguém andou a brincar com os meus poemas...

... o que é absolutamente inominável. Mas seja, cada um diverte-se à sua maneira. 

 Recebi a seguinte comunicação do Blogger, relativa a três poemas: Osama, de Joaquim Camarinha, meu antigo heterónimo (15/02/2006), Quarta-feira de cinzas (19/04/2006) e De que serve a primavera: "Como você sabe, as diretrizes da comunidade delimitam o que é permitido e proibido no Blogger. Sua postagem com o título xxxxx foi sinalizada para revisão. Concluímos que ela viola as diretrizes e cancelamos a publicação do URL xxxxx , que está indisponível para os leitores. Por que cancelamos a publicação da postagem do seu blog? Seu conteúdo violou nossa política contra malware e vírus. Acesse a página "Diretrizes da comunidade" vinculada a este e-mail para saber mais."

 Como não tenho disponibilidade para andar a deslindar que diabo se passa com esses urls, republico os três poemas em causa de seguida:

Osama (de Joaquim Camarinha) 

Os bandidos de uns são os heróis de outros 
E, conta-me a experiência, heróis e bandidos 
São todos recordados como desenhos animados 
- onde fica o ser humano e o que pretendeu ser? 
O pó da terra mistura-se, um dia, ao vento do grande deserto 
Que encontra o seu caminho por entre narinas apáticas 
E se afunda, enfim, no lenço, no saco, no contentor... 
Escolheste o teu caminho, se escolheste, 
Se alguém chega a escolher alguma coisa, 
E foste terminar-te numa imensa cratera estéril... 
Sobre ela move-se o universo indiferente 
E o vento estelar engolindo todas as pegadas. 

Quarta-feira de cinzas 

Hoje é quarta-feira de cinzas 
Sem ser quarta-feira de cinzas, 
Pelas cinzas de todos os cigarros, 
Pelas cinzas das braseiras do passado, 
Pelas cinzas que volteiam pela curva temporal... 
Nas ruas, em dias de cinzas, 
Não há rectas nem espirais. 
Somente rasgos de tintas 
Que escorregam além-telas, 
Enganam os deuses à passagem, 
Perpassam os olhares das deusas 
Que nunca parem fins nem princípios. 
Belíssimo caos da anarquia natural, 
Tão bem oculto por pinturas indeléveis! 
Vejo-os felizes, infelizes, indiferentes, enganados, 
Convictos de que os relógios marcam horas concretas, 
De que Deus zela por cada livre-arbítrio, 
Certos da ordem, que é a maior das excentricidades... 
Amanhã visitarei a minha sepultura abandonada 
Onde jazem todas as ilusões, todos os projectos, 
Lançarei ao ar as minhas cinzas em slow motion 
E deixar-me-ei submergir por essa chuva suave... 
Hoje é quarta-feira de cinzas 
E, amanhã, quarta-feira uma vez mais. 

De que serve a primavera 

De que serve a primavera, 
O canto das aves canoras, 
Se tudo em mim degenera, 
Se em mim se arrastam as horas? 

Se os raios solares me encandeiam 
Como lanças do divino 
Quando os campos se incendeiam, 
De que serve o sol a pino? 

Tudo é lento e arrastado, 
Reflexos, o tempo parado, 
Artificialmente triste... 

E nada efectivamente existe. 
Ouço-os rir, conversar, 
E eu, alma penada a pairar...

sexta-feira, março 24, 2023

Sei lá o que os outros pensam


Sei lá o que os outros pensam
Quando olham na distância
Ou perto ou a meio caminho
Quando encerram a vista
E não se vê o olhar
Ou o olhar se dissipa
Sei lá o que lhes vai dentro
E que me importa saber
São cores das mais variadas
Ou tons de cinzentos vários
O olhar voltado em si
Ou fixo no que elas veem
Sei lá o que as confunde
Sei lá o que as garante
Por momentâneo que seja
Um olhar de viajante
Tão cercano ou tão distante

Imagem de: eBiografia.com

quarta-feira, março 22, 2023

Preguiça


A preguiça enrosca a hora
Nos ramos da densidão
Que tombam em lentidão
Como sonhos vida fora

E o musgo abraça o olhar
Que desliza noutros mundos
Em sonhos vívidos, fundos
Como a alma a passear

Preguiça, gémea do mato
Que alguma luz perpassa
Da cor que uma ilusão faça
Viver bem no seu recato

Quero apenas descansar
Lentificando a erosão
Com a tua suave ilusão
Que me ensina a despertar

Imagem de: Depositphotos

sexta-feira, dezembro 30, 2022

Boas Festas para todos


Eis-me ainda por aqui. Votos de que tenham tido um bom Natal e que 2023 seja muito melhor do que aventam as aves de mau agouro. Abraços.

sexta-feira, julho 08, 2022

Flor do areal


 

Pequena flor silvestre entre as daninhas
Enfrentando ondas e as dunas refletoras
Onde andas, como cresces, a que horas
Esqueces os relógios e jamais definhas

És perene, sobes, curvas no azul
Que te banha de luminosidades
Longe dos tons foscos das cidades
Fazes do teu norte um claro sul

És a vida que as pétalas inalam
Doces, e alegre, fitando o horizonte
Desde os rumores suaves a Orionte
Tens inspirações que me embalam

Imagem de: Pinterest

quinta-feira, junho 02, 2022

Os fotões

 


Engarrafamentos de fotões
E num vazio de transições
Nos não-momentos
No frio dos ventos
Tudo se some
O que é que come
Todo o universo
E o seu reverso
Magia pura
Câmara escura

Imagem de: Máquina de escrever

segunda-feira, abril 11, 2022

As gotas


Se as gotas tombassem suaves
Pingo a pingo sobre a fronte
Nas têmporas como num rio
Certas retas como um fio
Aspirinas do horizonte
Flutuantes como aves

Se as gotas pingassem lentas

Refrescariam as almas
Os cérebros tonitruantes
Os nervos tensos e intensos
Como humedecidos lenços
Em termómetros escaldantes
Medindo jornadas calmas

As gotas como águas bentas

Para quê dores de cabeça
Nervosas prosas com rima
Para quê qual o interesse
Porque a vida não carece
De obra-irmã ou obra-prima
Só da vida que aconteça

Imagem de: Wikipedia

quinta-feira, março 24, 2022

Uma curiosidade (enxurrada de visitas)...


 

A curiosidade é que são, neste momento, 14:04 horas em Portugal Continental, e que, depois de, ontem, ter publicado um poema chamado A Guerra, contei, hoje, até ao momento, com um total de 492 visitas dos Estados Unidos. Eu acho engraçado.
Acharia, claro, mais engraçado, mais positivo, se tal se devesse a um forte interesse pela minha poesia. E seria bom que tivessem capacidade de entender o que escrevo, entre bots e não-bots. Não sendo assim, paciência. São mais 492 visitas.

Imagem de: alensa.pt

quarta-feira, março 23, 2022

A guerra


 

Não há eufemismos viáveis para a guerra
Onomatopeias para o zunir dos canhões
Metáforas para o solo vermelho ensopado
A terra aplanada de lama esmagada
As sombras e manchas nos edifícios
Tudo rebentado, tudo orifícios
Não há eufemismos, não há artifícios
E as vozes erguidas em dor e revolta
Enquanto os senhores ordenam espaços
Em amplos salões, com mapas e passos
E a gente resiste, e a gente persiste
E a cegueira entaipa o mundo de vendas
Nos mercados negros, cobiças e lendas
Quero crer que há poços não de combustível
Mas de enxofre quente, fundo e insensível
E que o choro e a raiva, hoje emudecidos
Temíveis correntes do mundo invisível
Calarão as vozes dos embrutecidos

Imagem de: US Money Reserve

quarta-feira, fevereiro 23, 2022

Balada do populista


Deixas o carro de compras no caminho
Lanças a máscara ao passeio, à via
Junto ao dejeto de um cão de companhia
E a um vómito cheiroso e cor de vinho

Buzinas longamente pelas pistas
Tens pressa e não sabes onde vais
Mal entras, imaginas como sais
E encontras o caminho nos fascistas

Quererás tu tropeçar no artifício
Respirar o interior da tosse alheia
Escorregar no odor que incendeia
Beber a podridão de cada vício

Queres ordem, exigência, novas vistas
Vociferas e gargalhas como um louco
E se essa raiva intensa ainda é pouco
Encontras quem não sabes nos fascistas

Imagem de: WETM

terça-feira, janeiro 11, 2022

Valsa da ausência de imaginação


Pairava ainda ontem, na noite caída
Como uma cortina cinza de veludo
Uma névoa densa, de aspeto sisudo
Que moldava a mente e a breve avenida

Dentro do automóvel, fora da atenção
Pensei lentamente para com o meu volante
Que a névoa de gelo, gotícula errante
Se me esfiapava pela imaginação

Imagem de: Wikipedia

sexta-feira, dezembro 24, 2021

Boas Festas


Como anualmente, há tantos anos, faço, deixo aqui os meus votos de um Feliz Natal para todos e Hannukah ou outras coisas para quem preferir.
Boas festas e obrigado por me irem lendo.

Imagem: iStock

terça-feira, dezembro 07, 2021

Chove na rua empedrada


Chove na rua empedrada
Como se a pedra chovesse
É triste e desconfortável
Frio e quase miserável
Como se o mundo bebesse
De forma desenfreada

Mas não me chove na alma
Não tenho paredes greladas
Nem corredores com humidade
O tempo cobre a cidade
De ideias desvinculadas
E flui em regos que espalma

Imagem de: KRON4

terça-feira, novembro 30, 2021

Manifestação


 

Vou organizar uma demonstração
Pela eternidade do tempo de verão
Bater nos tambores, nos muros, no chão
Inventar palavras de exclamação
Explodindo a areia e moendo o grão
Que rebenta vagas contra um paredão
No tempo de estio, sol de furacão
Ensaiar protestos numa canção
Fixando a atmosfera num sonho de verão
Na noite estrelada onde os grilos estão
Junto a um riacho, no verde de um vão
Rebentar de paz mente e coração
Descansar no fundo de uma impressão

Imagem de: ABC7 New York

domingo, novembro 07, 2021

Big Bang, Big Band


Talvez seja hora do recolhimento
Escutem, estrelas velhas desse firmamento
Ruído fantasma que trespassa o espaço
Recurvando o tempo e encurtando o passo

Tudo passa e parte, naves de ilusões
Pelos sons do cosmos, imagens, canções
Talvez seja altura de o peso vencer
Não é grave a idade, apenas viver

O que é velho arrasta, o que é novo gasta
E é naturalmente coisa iconoclasta
Talvez pouco reste porque é sempre assim
E seja um princípio, princípio do fim

Imagem de: Ivey Business Journal

segunda-feira, novembro 01, 2021

Os mortos, os vivos e o que aparenta


 

Ninguém jamais regressa de onde vai
Nem do passado, tempo enevoado
Em tons estranhos, feel ensolarado
Mesmo ninguém, nem mãe, nem pai

Fazem as religiões de velas, flores
E sangue, muito sangue nas imagens
Como vinho misterioso de miragens
Pão metafísico, vagos descritores

E a vida corre no que sempre passa
Olhares perdidos pelos cemitérios
Por terra caídos como vãos impérios
E ainda incensórios de graça e desgraça

No fim, seja duro ou mole
Cabe tudo em Deus, a idade
O tempo da relatividade
E adeus, que a física engole

Imagem de: Public Domain Pictures

terça-feira, outubro 26, 2021

As plantas


Agradeço o mundo às plantas
Olho-as lento e agradeço
Por estarem no ecossistema
No meu cérebro e nos pulmões
No coração bombeante
Na sensação do universo
De graça no ecossistema
Pedindo nada em retorno
Exigindo coisa alguma
Vivem da terra e da chuva
Não ladram, não uivam, não mordem
Não debatem, não protestam
Balouçam na brisa gentil
Existem por existir
Na base da existência inteira
Verdes, vermelhas e pardas
Florindo e frutificando
Parecem estar desde sempre
Em meditação constante
Inspirando e expirando
Todo o universo aparente
As plantas de porte frondoso
Como um deus calmo e bondoso

Imagem de: Ambius

segunda-feira, outubro 18, 2021

Outono


As folhas douradas do outono
Tremolem como um violino
Ou vibram em metal fino
Som monótono ou monotono

Que fortíssimo atonal
Quisera eu transportar
As palavras e o rimar
Para um conjunto orquestral

Átomos fariam explodir
Pianas as folhas no chão
Crescendo entre a mornidão
Da atmosfera a retinir

As nuvens dançando no ar
Timbalariam as mentes
Com cores frias de tons quentes
Luz do grand finalizar

Imagem de: iStock

quarta-feira, outubro 13, 2021

Nostalgias


 

Nostalgia do passado
Nostalgia do futuro
Guardem as nostalgias
Como velhas letargias
Ou um sonho prematuro
Numa gaveta arrumado

Que é já tarde e vou dormir
É já cedo e hora da sesta
Guardem todos esses sonhos
Alegres e enfadonhos
E não deixem qualquer fresta
Onde a luz possa bulir

O presente é fugidio
Mas é nele que nos movemos
E é só nele que existimos
Memórias que consentimos
De coisas que não vivemos
São sombras de um olhar tardio

Imagem de: Dana Education Group

sábado, outubro 02, 2021

Por que porque porquê


 

Tocam os judeus violino
E Sherlock Holmes usa lupa
A água cai em catadupa
E o sol inflama-se a pino

Tocam os pretos batuque
Livingstone usa chapéu
Cataratas são um véu
Horizontes são um truque

Tocam os índios tambores
Os cowboys são sempre os bons
E o que se ouve não são sons
Mas impressões como cores

Tocam os brancos piano
E usam casaco e gravata
Saúdam o aristocrata
E agem segundo um plano

Amarelos dão-se ares
Diz-se que comem insetos
E pensamentos concretos
E ideias milenares

Não sei porquê a assunção
Talvez eu visse uma tela
Ou um filme ou uma novela
Ficou-me a interrogação

Imagem de: maestrovirtuale.com

terça-feira, setembro 21, 2021

Viagem


 
Vou partir num sopro leve até ao topo do Evereste
E sentir o vento frio nas praças de Budapeste
Beber uma piña colada nalguma estrada cubana
Enquanto deslizo com o Nilo até à selva africana
Juntar-me a ti no areal tão longo de Porto Santo
E chegar à Terra Santa escutando rumores de Esperanto
Atravessar a Austrália inteira e aterrar em Pequim
Num deserto de saguaros onde o céu cai sobre mim
Embrenhar-me nas ruínas de mil civilizações
Onde o tempo é sempre ameno e a brisa trauteia canções
Ver o barroco do sul e calcorrear as pampas
Até às falésias geladas desenhadas como estampas
Tombar em hipotermia num estranho sonho que diz
Que partilho um absinto com Hemingway em Paris
Jantar opulentamente à mesa de um marajá
E despertar sorridente no azul do meu sofá

Imagem de: emotionportugal.com

segunda-feira, setembro 13, 2021

A capital


 

A capital, palacetes e casebres
Torres de ouro debruçadas sobre o rio
Descentradas do humilde casario
Outras torres empinadas sobre os morros
Os pedantes bares da moda, discotecas
Casinos e os tristes salões de bingo
Os fados que encandeiam os artistas
Os taxistas que entontecem os turistas
O zum-zum atarefado e circular
Restaurantes, bares, cafés, pastelarias
Ladrilhados gordurosos da calçada
Assembleias e castelos de enxurrada
As buzinas ecoando entre os ruídos
Terramotos e eventos distraídos
As memórias distorcidas das infâncias
Largas barras que se perdem nas distâncias
Os museus e os becos poluídos
Monumentos com os muros tão polidos
O imaginário errante das estâncias

Imagem de: JM Madeira

quinta-feira, setembro 09, 2021

Incomunicabilidade 2 (ao meu pai)


Os poemas devem, por norma, permanecer abertos a todas as polissemias, mais ou menos acertadas ou delirantes, bem sei. A partir do momento em que a criação se oferece ao público, passa, de algum modo, a pertencer-lhe (os mais radicais dirão que passa a pertencer-lhe por inteiro, o que é engraçado, porque equivale a um pai atirar os seus filhos para o mundo e não ter mais coisa nenhuma a dizer-lhes, ou acerca deles).
Vou abrir uma exceção...
Teria, penso, 17 anos, quando escrevi um conjunto de tentativas de poemas. Não eram poemas, que a poesia exige... poesia. Enfim, arte poética. 
Certo é que o meu pai, naturalmente porque gostava de mim como acho que um pai deve gostar de um filho, inclusive nas idades mais complicadas, viu poesia nas minhas tentativas de poesia. E decidiu oferecer-me um pequeno livro. Recordo-me de o ver mostrar a pessoas próximas um dos meus esboços, a que chamei Incomunicabilidade (sobretudo porque me soou bem) e que, continuo a não entender como, os consegui enganar a todos - repito: não sei como, não foi exatamente intencional; em determinadas alturas da vida, as coisas simplesmente pairam de forma confusamente intuitiva.
Esse livro foi composto na tipografia da Casa do Gaiato, acho eu, e materializado com capa dura de papel couché.
O meu pai faleceu demasiado prematuramente, em 1981. Este poema (finalmente!), recorda-o, recorda-nos e constitui um pobre agradecimento meu pela riqueza do seu amor.

Mero vocábulo sonante
Perdido nas asas dos dias
Que achaste que entendias
E o sol derretia, distante

Não chegava a ser poesia
Era apenas tatear
Mas levou-te a acreditar
Em mim e no que dizia

Incomunicabilidade
Soubera comunicar
Contigo, pai, a pairar
No azul da eternidade

terça-feira, agosto 31, 2021

A vespa


 

A vespa zune numa elipse tonta
Protegendo o ninho de ilusão
Onde guarda cuspo e papelão
E a espada de veneno e proteção
Que ameaça o dia e o afronta

Para que servem vespa e presa
A mosca, o mosquito, a pulga, a aranha
O território, a terra, a pátria estranha
O lar, o olhar, o respirar, a artimanha
Se tudo é ilusório e sem surpresa

Imagem de: Wikipedia

segunda-feira, agosto 23, 2021

Entrega

 


Creio que o Senhor tem os seus caminhos
Por entre desertos e florestas densas
Galáxias de luz, negridões extensas
Cidades terrestres cobertas de espinhos

Creio mal valer o que possa crer
Nervos diluídos de ordens neuronais
Ora aqui felizes, ora ali fatais
Embrulhado em sonhos, tenso de viver

Deveria, acho, entregar-me inteiro
Ao que aparenta, que talvez exista
E ser satisfeito, sem pontos de vista
Mero grão de areia, sereno cordeiro

Aceitar o espinho que nasce com a rosa
Pois é natural, só eu o não sou
Cortar a raiz que se ressecou
Regar-me de paz doce ou ardorosa

Imagem de: Wikipedia


quarta-feira, agosto 18, 2021

I hear dead people


 

Áudio, vídeo, texto, real virtual
O círculo rodou no cosmos em mim
Suave ventania sem início ou fim
Brilho de existência e eu ser orbital

Diariamente os ouço como que presentes
Tocando instrumentos, contando-me histórias
No advir exaurido de luz e memórias
Científica dúvida de sopros ausentes

Diariamente falo e ao falar converso
Com desconhecidos que invadem o mundo
Na casa que ocupo, no sofá que afundo
Vivos no eterno, no sol, no universo

Imagem de: Pitchfork

quinta-feira, julho 08, 2021

Dia


 

As nuvens deslizam pelo céu sem nuvens
Como havendo o inefável e o inenarrável
E as ondas que embatem nas costas da mente
Que pensa e dispensa simultaneamente
E pausa e agita e estando é instável
Em universos velhos de galáxias jovens

Que dia rebrilha e que vento venta
Tudo são imagens de som e de cor
E tempos abstratos numa tela cheia
Raios embrulhados como numa teia
Do muito pequeno ao muito maior
Todas as coisas que o cosmos inventa

Imagem de: www.blueskybio.co.uk

segunda-feira, junho 07, 2021

Arrábida


A Arrábida é o Porto
A ponte vista da Foz
Traçada frente ao Palácio
Esquissada de Miragaia
Aos sóis nascente e poente
Sob os raios do meio-dia
A Arrábida que o guia
Em direção a si mesmo
O Porto de outros dias
De hoje e do amanhã
A Arrábida e o movimento
E eu sou criança na ponte
Usando os elevadores
Olhando-a encostado a um muro
Qual promessa de futuro
Sobre as águas rebrilhantes
Dos verões que se aproximam
E dão lugar a invernos
E as águas redemoinham
E o gelo cai sobre a ponte
Que é em si toda a cidade
E memórias sem idade

Imagem de: Wikimedia Commons

segunda-feira, maio 31, 2021

Circularidade


Detesto os cães a uivar
Como desdenho as touradas
E as bestas que por nadas
Galopam para atacar

A rua que não é minha
Não pertence a ser nenhum
Como o mundo que é só um
E só gira até ao fim da linha

Tive em tempos uma rua
De boas e más memórias
No tempo em que havia histórias
E mundos além da lua

Hoje tenho cães uivantes 
E ponteiros a rodar
E vontade de os matar
E razões para os deixar
Com os seus olhares divagantes

Há horizontes nas mentes
Em tic-tacs circulares
De ideias solares e lunares
Que enchem de coisas os ares
Todas iguais e diferentes

Imagem de: Newsweek

sexta-feira, maio 21, 2021

Deus é amor


Deus é amor, é esse o discurso.
E nós, pobrezitos, não compreendemos
A história de Job e tudo o que lemos
Lázaro violentado e tudo o que vemos
A maçã vedada por quem tudo sabe
Figueira castrada contra a natureza
Abraão mandado trucidar o filho
Divisão dos homens, na torre, em Babel
Tudo e todos mortos, raiva do Dilúvio
Lot feita sal por um mero olhar
Poeira louvada no Final Juízo
A crucificação, São Sebastião
A dor que perpassa e o Senhor tão quedo
Mudo, silencioso, gritante de nada
Na Inquisição e em cada cruzada
Não compreendemos, Moisés, Deus, a Fogueira
O povo escolhido, povo preterido
Tão estranhos desígnios de fé e cegueira

Imagem de: Tate Gallery (William Turner)

quinta-feira, abril 22, 2021

Poeira do deserto


Os caracóis são pisados e enganchados
As lesmas esmagadas, liquefeitas
As pessoas feitas caminhar direitas
Os pescoços das gazelas são quebrados

É um redemoinho neuronal de criatividade
Em queda livre: poços espaciotemporais
E tudo é pó, as coisas vivas, naturais
Pó do deserto, cada grão uma igualdade

Na igreja diz-se bondade, missa, justiça
Nas assembleias o planeta é protegido
Nos discursos ninguém é preterido
E é uma mistura de ação e de preguiça

Imagem de: InfoEscola

quarta-feira, abril 07, 2021

Elegia violenta do idiota


Passa, corre, foge e ultrapassa
Num fogacho a arder, ser de corisco
Buzinas a estrondar, riscado disco
E cruza resvés a gente lassa
Que não passa, que se atrasa no sinal
És motor, estertor, carburador
Ronco e raiva de tempo cortador
Tudo revoa nessa cruzada final

Jazes agora num circuito morto
Poder torto, rumo nenhum, nem porto

Imagem de: Aldergrove Star

segunda-feira, março 08, 2021

Na caverna


 

A vida paira com a morte
Como a sorte com o azar
E o luar com a luz solar
Sul, leste, oeste e o norte

Nada imagino de nada
Ainda que imerso no lodo
Que não entendo de todo
Miragem entrelaçada

O que algo é, desconheço
Incapaz de compreender
Em cavernas de não ver
As alegorias que teço

Se existo? Devo existir
Na marca do próprio verso
No tempo e no seu reverso
No pensar com o sentir

Vivo no sono acordado
Como um ruído lá fora
Que se apressa e se demora
E que indica nenhum lado

Imagem de: Medium

domingo, fevereiro 21, 2021

Aves em bandos


As aves que voam em bandos
Sobre os lagos e os telhados
Sob o sol e os céus pesados
Fazem os dias mais brandos

Como um tempo mal visível
Alucinações felizes
Iluminações, raízes
Que tornam o dia credível

Vejo-as de olhos cerrados
Rasgando o azul e a psique
As aves que caem a pique
Erguem-se em significados

Imagem de: All About Birds

terça-feira, fevereiro 16, 2021

Avenida (a Rita Lee)


Percorro a Avenida Paulista
Onde nunca estou nem estive
Em lugares por onde vive
A tribo ripi sambista

O sol trespassa o cimento
Imaginário e concreto
Como uma nota no teto
Escrita num caractere lento

Paulista avenida sacada
Do peito como um punhal
Num ano sem carnaval
E a garoa cobre a estrada

E a vida encobre o sonhar
Dos poetas em estertor
Talvez num mundo melhor
Talvez num mundo a passar

Quiçá quiçá prevenir
Retirar o corpo e a mente
Seja um ato ebuliente
Da alma que voga a fluir

Imagem de: São Paulo São

quinta-feira, fevereiro 04, 2021

Conímbriga


Em Conímbriga, entre ruínas
O vento corta o sol e a chuva
E a imagem numa névoa turva
Que escorre por camadas finas

Em mosaicos e calcários desbotados
Confundindo a vida tão provinciana
E lenta, longe a serra lusitana
A infância e os seus dias transformados

Dias longos e serenos, silenciosos
Nos confins, a aventura de nada fazer
E tudo nada ser, mas parecer
Que há algo entre rumores misteriosos

Pequeno e carcomido, esse viver passado
Em caldos de ADN, sangue na terra
Nos quintos que esse império encerra
Em mesas da primária e som calado

Por lá andámos em visita
Pequena a área, céu de imensidão
E tudo se confunde na razão
E instinto da vida finita

Imagem de: aeiou

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