Ode global
Rasguem-me as calças às tiras,
Puxem-mas até aos joelhos,
Varem-me a língua e o umbigo,
Ponham-me um boné de lado,
Ritmicamente amordaçado!
Iou!, grito de dor e de pasmo.
Iou!, gritam em coro em São Bento.
Iou!, em Bruxelas e em Estrasburgo.
Tá-se bem no tá-se mal,
Tá-se nos dias que arrastam
Com ar de passarem depressa.
Escutem-me bem, ditadores,
Filhos dos golpes Fontistas,
Filhos dos Condes d'Abranhos,
Filhos da choldra sem tempo!
Escutem a língua das cifras,
A língua seca das taxas,
Da inflação, da deflação,
A língua mordida de vespas,
A linguagem jivaresca!
Com os anos chegam as rugas,
Com as rugas, a impotência,
A impotência na vida,
O não se ter feito nem sido,
O nunca se vir a existir,
Chega a auto-complacência
Mascarada de exigência...
E o gosto da normalidade...
E o vómito do dia-a-dia!
Iou!, gritam nos ministérios,
Urra-me a inconsciência!
Iou!, morremos de eloquência.
Dêem-me um balde de tinta,
Quero sujar as paredes,
Quero sugar os ecrãs,
Quero encharcar os olhares,
Quero todos nos radares!
Escutem-me bem, quem me escute,
Não tenho nada a calar
Nem tenho nada a falar,
O meu grito é abstracto,
É um borrão primordial!
Iou!, vivamos de olhos tapados,
Logicamente infelizes!... Imagem de http://italy.indymedia.org.
Eles
"Não há mercado!"
"Não há trabalho!"
"Eles é que mandam!"
E não há poesia
Porque matam a poesia
E ninguém lhe chora a sorte.
E não há vivalma
Pelo genocídio absoluto
Que não passam na TV.
Não há nada mais no mundo,
Só fábricas algures na China,
Bancos e multinacionais.
E a cada verdade gelada
Do anónimo da mesa ao lado
Morre ele mesmo e todos nós,
Morre a beleza no mundo,
Morre a esperança, a humana esperança,
Nesta terra de robots. Imagem de www.guttertype.com.
Dá
Dá-me...
Dá...
Dada.
O dado rola,
Tomba esquinado,
Cai enquinado,
Atropelado
Por uma bola!
O tempo impassa...
Serei carcaça
Mas não cresci.
Flutua a lua
Tão amarela!
A lua nua,
A lua crua,
Pela janela.
Dá.
Não dês.
Joga outra vez... Imagem de www.sdreams.com.
Prometeu agrilhoado
Prometeu agrilhoado
À vida, às obrigações,
Aos sonhos por materializar.
Prometeu agrilhoado
Assiste da última fila
Ao mundo que gira em redor.
Prometeu agrilhoado,
Pelos ventos acossado,
Pelos tempos esmagado.
Prometeu olha a TV,
Olha as capas das revistas,
Os carros grandes que passam,
Os viajantes que partem,
Os bafejados da sorte,
Os filhos do livre arbítrio.
E tudo lhe ecoa na mente:
Prometeu, eu, eu, eu... Imagem de www.michaelmhensley.com.
Do olhar
Quem mais dorme assim, de olhos abertos,
Como eu, de olhos abertos a dormir,
Abertos, escancarados, ou túmulos selados
De pedra íntima, gélida, calada e secreta
Onde ninguém saberia penetrar impune,
Salvo eu mesmo - e nem eu mesmo - às negras badaladas,
Eu, sorvendo sequioso a minha hemoglobina,
Esse rio rubro que corrói a alma
Em metamorfoses tristes e empastadas,
Linhas tão correctas de um DNA indecifrável?
Sou a assombração privada do meu ser
E só assusto de morte e fatalidade
Os morcegos silenciosos que vivem pendurados
No olhar que guardo atrás do olhar
Do olhar do olhar do olhar do olhar... Imagem de www.outdoorinasia.com.
Desejo de ser fotão
As telas amadoras nas paredes,
As fotos em molduras que as contêm,
Cada ser entregue à sua vida,
Cada ser conversando para o seu lado,
As cores variadas como se homogéneas,
As mesas com tampos de vidro reflectindo o tecto,
As cadeiras almofadadas em tons incompreensíveis,
A vidraça, grande, de onde se vislumbra,
Se vislumbra o quê? Mais coisas e outras coisas,
Cada uma com a sua personalidade tão igual,
Cimentos, colunas, vidraças e gente passando,
Cada um passando para o seu lado...
Sentimentos flutuam como sons
E risos e choros e pensamentos tão voláteis!
Nada é real, nem sequer o próprio rei.
E quem me dera ser um minúsculo fotão
Que só o fosse, talvez, ao toque do interruptor... Imagem de www.pixiport.com (foto de Bogdan Zwir).
O enforcado
Cego como a justiça dolorosa
O enforcado estende o olhar curto ao infinito,
A miopia ao longo da planície seca e pedregosa...
O enforcado esforça o olhar mas não tem fito.
Que mão pesada secou os fontanários do passado?
Quem impôs este sol amarelo e doentio?
Quem fez dos pomares todo um planeta estagnado?
Quem ousou calar o gorgulhar do rio?
Ao longe, um castelo de cartas periclita
Prestes a lançar-se ao vento em caos total...
E o enforcado, que olha mas não fita,
É a carta mais fácil de tombar no pantanal. Imagem de www.bewtchingways.com.
Se somos todos iguais
Se somos todos iguais
Como achas convictamente
É igual quem arrisca mais
E quem tudo exige indolente
É igual a luz do sol
Ao inverno e à escuridão
E a coruja e o rouxinol
Cantam a mesma canção
Quem sabe porque aprendeu
É igual ao principiante
E o rato, que rato nasceu
É igual a um elefante
E enquanto nos degladiamos
Governam-nos sem piedade
Os gordos corruptos, tiranos
Que impingem a igualdade Imagem de www.wishihadthat.com (tela de Louis Icart).
Desejo do limbo
De nada adianta o desejo do limbo
E o paraíso é uma abstracção...
Tudo se paga, tudo se trabalha
E já vi ouro transformar-se em palha.
O sonho é o sonho -
Extravasa a tela mas é só borrão
E já vi o sim transformar-se em não.
Tudo se paga, tudo se trabalha
E já vi o limbo fazer-se fornalha. Imagem de www.shazzie.com.
Aniversários
Todos os dias
Deixo perfeitamente incelebrados
Quer o teu nascimento, quer a tua morte.
Todos os dias existes
Em universos que do meu se separam
Sem grandes chamas,explosões,
E mesmo Deus só vislumbra o que é normal.
Todos os dias, tão normais,
São dias de desaniversários
À mesa longa do chapeleiro louco
E eu rio como um gato intensamente psicadélico...
De tristeza, de alegria e até por tique -
A quem interessa porque me rio?
Festejo apenas a nossa imensidade e a nossa pequenez
Sepultadas, por destino, em pensamentos vagos... Imagem de http://floatingworldweb.com (desenho de Sir John Tenniel, 1864).
Lá fora e cá dentro
Faltei repetidamente às minhas obrigações
E, faltando, pequei por deslocalização,
Sufocado entre páginas pesadas de livros sagrados
E olhares de quem me censura sem me censurar.
Lá fora, mantém-se estático e cinzento o céu,
As árvores naturistas, despidas de culpabilidade.
Os outros, sempre os outros, formigam persistentemente
E sabem que falhei, mesmo não me olhando.
Lá fora, gira o planeta num ritmo sempre igual,
Sucedem-se as estações e as vidas, sempre iguais...
Lá fora é tudo o que não é cá dentro.
Sou um tigre enjaulado e impaciente
A quem se esqueceram de trazer a refeição. Imagem de www.lib.uwo.ca.
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