Crepuscular
Há uma altura particular
Em que tudo se turva na visão
Misturam-se o real e a ilusão
E a vida faz-se crepuscular
É nesse momento de fundo torpor
Que o pesadelo tudo esvazia
E o vórtice que o silêncio cria
Faz-se um vampiro triste e sugador
Morrem os doentes pelos hospitais
Tombam de fome os trabalhadores
Tornam-se em nada os ternos amores
E as soluções fazem-se finais
Os tubarões invadem os cais
De carniceiras alucinações
E os marinheiros calam as canções
E imobilizam-se em poses fetais
Toda a terra aguarda da hora o findar
Que o sol novamente aqueça o planeta
Que a cor reocupe os versos do poeta
Que a vida retome o seu palpitar Imagem de: www.trekearth.com.
Simples redondilha simples
Os ruídos matinais
Crescem leves, misturados
Dançarinos encantados
Em palcos artificiais
De ruas acinzentadas
Entre aromas vegetais
Sob as nuvens tão carnais
Que abraçam terras douradas
Sento-me por um instante
Numa mesa de esplanada
E observo a gente apressada
Que leva o dia adiante
Não quero saber de nada
Quero apenas respirar
A primavera a pairar
Das aves a chilreada
Não quero ser responsável
Ter funções, contradições
Sopesar as emoções
Ser adulto e imputável
Desejo apenas fluir
Nos ritmos da existência
E ter somente a ciência
Do presente e do intuir Imagem de: www.makizart.com.
Luz branca
O poeta chegava de uma longa viagem pelos continentes
Onde as gentes vivem imóveis na esperança do movimento perfeito
Gotas de suor misturavam-se-lhe na pele com a chuva intemporal
Todo o seu olhar eram imagens inauditas como filmes de autor
Na planície deserta do caminho entrou numa casa
Abriu a porta, olhou em volta e sentou-se entre os presentes
Quem és, de onde vens, o que tens para nos contar?
Era uma casa abastada entre longas cortinas cor do ouro
Trouxeram-lhe carnes suculentas, vinhos exóticos chegados do Oriente
O poeta declinou
Mostraram-lhe rios eldorados poderosos com a potência de altas cataratas
O poeta declinou
Apresentaram-lhe as mais belas ninfas de lábios rubros como rosas primaveris
O poeta declinou
Trouxeram, mostraram, apresentaram, inquietaram-se com a exigência do poeta
Que queres no fim de contas, diz-nos, como compensar o teu cansaço?
Então, pediu uma folha branca e nela desenhou um pequeno ponto branco
O mundo continuava insone, imóvel, à espera de um movimento
E no chão, entre os presentes, o poeta adormeceu com um sorriso matinal Imagem de: http://solarider.org.
Suicidário
? Que mão empurra alguém em queda vertical do topo da montanha
? Como cruza alguém subitamente o comboio em movimento
? Que sonho estranho provoca a sedação eternizada no negrume
? Quem força a agulha a retalhar a veia e o sangue a invadir o pensamento
? Quem corta assim insanamente as cordas à triste marioneta em labirintos
Alice acocorada num espelho de feira e todos riem do grotesco
Assim encurtando memórias e as parcas enrolando ralos fios
E paz tão branca sempre à frente sempre ausente do actor Imagem de: www.travelblog.org.
A mãe (romântica-realista)
Enquanto o homem parte para a guerra
E os rostos se cobrem de sangue e metal
Ela é paciente, ela é maternal
Ela é o elo que ainda o liga à terra
Enquanto ele joga, fuma, bebe e exclama
Em longas mesas quentes, transpiradas
Ela faz manhãs dessas madrugadas
Meio adormecida num bordo da cama
Quando se altera nele o olhar
E dele se apodera uma fome urgente
Ela é o pão, o vinho e a semente
E a vida nova feita partilhar
Quando ele adormece como uma criança
Cansado das mágoas e das ilusões
Ela é o regaço das contradições
E o colo humano que lhe acolhe a esperança
Mãe universal que faz funcionar
O mundo de caos onde ele se alucina
Sorriso brilhante, lágrima fina
Pedaço de Deus no realizar Imagem de: www.bodycast-studio.co.uk.
O canto simples
Essa avezinha canora
Que canta ao sol refulgente
Canta porque não é gente
E a vida não se demora
Aproveita cada instante
Respira cada momento
E bate as asas ao vento
Que a afaga assobiante
Não tem roupas no armário
Não usa palavras caras
Em tempo de folhas raras
Neste mundo incendiário
É pura simplicidade
Na melodia instintiva
E é por isso que está viva
E canta a eternidade Imagem de: www.taitlifto.net.
Estoicismo
À árvore que não verga e quebra chamam lenha
E alegremente usam a chama que brota da lareira
Outros desmaiam, são temperamentais, forjam ataques
Correm como rios em correntes de força variável
Reunem-se em bandos junto ao fogo, calam
Amam, interagem, conversam sobre o dia-a-dia
Dizem que quem pode, pode e que quem manda, manda
Traçam mútuas intrigas que se esfumam pela chaminé
À árvore que não verga e quebra chamam lenha
E burro ao animal que não saliva ante o chicote
O estoicismo é a recompensa única do estoicismo
E não adianta suplicar porque Deus é um abismo Imagem de: www.radekaphotography.com.
Um funeral
Pálidas campas e mausoléus reunem-se em torno
Da gente de olhar pregado na madeira, na terra, na calçada
Tantos olhos tímidos do futuro sob o céu azul
As cruzes, os anjos românticos em poses suplicantes
Nossa Senhora de mãos postas e o olhar num candeeiro
E o padre soletra algumas palavras como pedras
Nos olhos de tempo paralisado dos não ausentes
Um soluço rompe o muro, é necessária contenção
Caem raios do sol gordo como pingentes inúteis
E paira uma pomba brava na primeira linha do voo
Voou a alma do defunto? Onde está? Quem viu?
Além da fotografia de um instante já tão vago
Nas memórias persistentes em manter o movimento
O bando é agora um esquadrão em voo quase alinhado
Vão na sua vida pequena, diária, com indiferença
Sentem, talvez, o cheiro da morte a erguer-se
E traçam círculos diversos sobre a roda dos presentes
Como arquitectos intuitivos a soldo do bonecreiro ausente
Nascem novos rebentos dos ramos de Março ensolarado
E cada folha é distinta como cada vida alheia
Silenciou-se o padre que parte agora entre o incenso...
Orai pelas nuvens! Imagem de: www.birminghammail.net.
Mata-borrão
O que torna as flores baças em certos olhares
O que faz das nuvens subjectividade condensada
O que faz picar o voo da ave em ascensão alada
Como se concentra tanta fruta podre nos pomares
Nada é absoluto, nada é objectivo
A ave canora arrepia a alma incerta
A lágrima dura é uma porta aberta
E o pensamento é sempre reactivo Imagem de: www.gregrob.ca.
O ensino inclusivo
Vejo-os passar, passar diariamente
Com as pastas na mão e o sorriso insolente
São os passarinhos, os bambis inocentes
Que se atiram para os bancos em poses indolentes
E passam papelinhos lançados pelo chão
Em que se chamam putinha, em que se chamam cabrão
E fumam ganza podre à esquina do portal
Sempre recompensados pelo ensino global
E são iguais aos mestres sem terem que saber
Clientes exigentes com queixas a fazer
E todos têm histórias dramáticas de vida
Que a todos justificam a balda desabrida
E o caos que invade o mundo da coisa social
É bom, é excelente e é um futuro banal Imagem de: www.careacterbasedsuccess.com.
As folhas novas
Despontam rebentos nas árvores da cidade
Despontam vibrantes, confiantes, naturais
São verdes como almas novas, gritos surreais
Rebentam ofuscantes de sinceridade
E incomodam tanto as almas desgastadas
Incomodam tanto na sua alegria
Rasgam lanhos fundos nas almas que um dia
Respiraram vida a plenas golfadas
Na suave anarquia de jardins floridos
Tomam os lugares das árvores passadas
Das árvores fendidas, quase derrubadas
Sob o peso inútil dos anos perdidos
Do topo dos céus espreita a natureza
Nem boa nem má, sem intenção alguma
Observa o oceano que se quebra em espuma
Como um caldeirão belo de crueza Imagem de: www.wallcoo.com.
Sinto pena das crianças
Sinto uma pena imensa das crianças enjauladas
Em parques naturais, com bilhete e com porteiro
Pai, não posso aproximar-me porque aquele pássaro pica
O que é aquele animal, uma cabra, o pai explica
Os animais espreitam pelas frechas apertadas
E os meninos sorriem um sorriso prisioneiro
Vejo-me numa tina, no meu banho semanal
Coberto do pó grosseiro que os carros de bois arrastam
As mulheres com os cântaros na cabeça a equilibrar
Os homens com as sacholas e os copos a esvaziar
Jogando cartas à noite num café artesanal
E em manhãs de fino orvalho as ovelhinhas que pastam
Sinto uma pena triste dos servos da organização
Que buscam a natureza em áreas de supermercados
Com as vidas penhoradas e dogmas do que é salutar
E as crianças controladas, fingindo que estão a brincar
E os parques naturais com o cimento rente ao chão
E os animais curiosos, os animais libertados Imagem de: www.innovativechildrenstherapy.com.
Oração
Condói-te da minha ciência fraca
Do tempo contado
Do espírito atado
À matéria opaca
Ora por mim na eternidade
Quisera ser cão
Quisera ser vão
Na irrealidade
Só a ignorância deixa conhecer
Respirar fundo
Percorrer o mundo
E nunca morrer
Pousa a tua mão no meu existir
Mostra-me a ausência
A não consciência
Deixa-me dormir Imagem de: http://zenpoppa.com.
Bons sonhos
Deixa-me dormir profundamente
No teu sofá junto ao vão de escada
Com a cabeça leve e encostada
Ao teu ombro sólido e abrangente
Deixa-me ser teu nesse torpor
A que confiante me abandono
Como a criança se entrega ao sono
E a luz jorra do televisor
Paira no calor da luz menor
Algures por entre a montanha e o mar
Com o coração a palpitar
Aos ritmos tão naturais do amor Imagem de: http://iamix.net.
A erosão
Vento, fazes de conta que volteias
Em onomatopeias milenares
Que espalham confusões nos vastos ares
Chocando contra as nuvens como teias
As nuvens, as falésias erodidas
Pela força contínua natural
Que vai moldando o espírito animal
Das gentes tão convictas, tão perdidas
É vê-los arrastarem-se nas ruas
Os ombros encurvados sob as luas
Os olhos nas marés mal transportados
Em densos guarda-chuvas abrigados
Imitadores ineptos desse vento
Que assim lhes vai varrendo o pensamento Imagem de: www.paranormaldatabase.com.
Poema um pouco à toa
No local onde me encontro não entra o sol a brilhar
O barco parte para longe vogando nas ondas do mar
E o que é preciso é escrever e dizer o que calhar
O sol divide os dias com a chuva
Tudo tão belo
Tudo tão ocasional...
Nas salas de aula, a cem metros
Faz-se o futuro a fingir
Tudo é luzes a piscar, modernidade a fugir
Faz de conta a refulgir
Escuta-se um berro no ar e voa um aviãozinho
Aplaudem os deputados, magistrados, o vizinho
E nunca jamais o progresso terá sido tão visível
Talvez eu seja insensível... Imagem de: www.mundim.net.
Junkie
Pálida, magra, indiferente
Na rua, a sua casa invernal
Atira um sorriso indolente
Mais poeira de osso que carnal
Atira o seu sorriso desdentado
Como quem atira o vácuo pleno
Num gesto sempre igual, mal calculado
Tão triste e por isso tão obsceno
Passa como quem se vai partir
Névoa incauta ao sabor do vento
Com a mini-saia rubra a cair
No chão onde morre o sentimento Imagem de: http://yahoo.com.
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