sexta-feira, maio 30, 2008

Gato deitado





Eis um gato escanzelado, deitado
Em frente à repartição de finanças
Grácil e táctil nas suas andanças
E dentro gira o dinheiro roubado

Passa a gente dormente e apressada
Deitando contas à difícil vida
Alonga-se a fila mal repartida
E o gato boceja sobre a calçada

Gato calado, mais negro que o breu
És mais luminoso do que eles todos
Respiras a vida em jorros e a rodos

Para ti não há gasolina a subir
Nem patronato pronto a despedir
Gato espalmado, companheiro meu


Imagem de: www.h2.dim.ne.jp (fotografia de Yamato)

Chuva travestida





A chuva recorta-se entre alguns raios de sol
E escorre, gelada, nos letreiros de imobilárias
Como epitáfios coloridos do progresso nacional.
A primavera pinga, pinga, pinga
E Junho está à porta aberta da esplanada
Onde um letreiro azul autoriza a liberdade moribunda.
Acendes maniacamente os teus cigarros continuados
Como as gotas pingam, pingam, pingam, pingam,
Falas e ris sozinho frases descontinuadas
E fazes tanto sentido como as casas por vender.
Quem te autorizou a vida por entre ataques de tosse?
Tudo depende de autorizações legais e superiores
Como a estranha chuva ordeira que se traveste de sol.


Imagem de: www.quizlaw.com.

sexta-feira, maio 23, 2008

Fragmentos





Os mortos prolongam a eternidade indefinida
Exclamando coisas incisivas e assertivas
Sobre o que sabem e o que desconhecem
Por isso quero apagar-me todas as pegadas
Como a chuva tombando brutalmente sobre a areia
Na rádio dizem que nem parece a primavera
E sobre a areia quente da Etiópia algures
Um rapazito empunha ao alto uma metralhadora
A areia seca cega e constrói flashes de Rimbaud
Todos os fantasmas em hordas confusas em Belgrado
E foi há tanto tempo sob tantos sóis passados
Cravos rubros insensatos em canos de metal
E um milhão de portugueses tem menos de dez euros diários
Enquanto os mercados ditam a subida da gasolina e dos alimentos
Estúpidos mercados que julgam ter aniquilado as revoluções
E outros tantos mortos anunciados engolem ouro em pó
Em restaurantes que a Autoridade teria encerrado e não encerrou
E todos os mortos falam tão alto que magoam a poesia
Os mortos e os vivos e os mortos-vivos em desafinação


Imagem de: www.obstanovka.com (trabalho de Rainer Mutsch).

quarta-feira, maio 21, 2008

Eurofraction





ArmadeijãoBerlindeCazatostãoDeónia
EsfíngiaFlashóniaGrapíniaHoleiria
IsmaelJasmíniaKrazovoLumbélia
MatrachtNortígiaOsmandiaPorstânia
QelequeleRatâniaSeiláviaTarnésia
UmbéliaVantóviaWhatnotXailéxia
YanoueZamíziaEurovisionEurotrash


Imagem de: www.agal-gz.org.

quinta-feira, maio 15, 2008

Nocturno do Mc Donald's à Rotunda do Lavrador





Um vagabundo come carne picada no Mc Donald's
Junto ao vidro grande de onde se avista um gangue
Ou algo assim, vários jovens vagamente hip-hoppers
De olhar mortiço, sorvendo coca-cola com ruído
E agora o vagabundo dirige uma palavra a um homem
Solitário, meio calvo, de expressão desencontrada
Que acena lentamente por entre uma dentada
E um rapaz esforça-se por ouvir a namorada
Dizem que não dura mais de meia hora, esta comida
Como a vida - dá quase vontade de rir
E todo o mundo se prepara para dormir

Em longa fila indiana (agora, mais compostinho)





Em longa fila indiana
Postam-se vivos e mortos
Que partilham nossa cama
E atracam em nossos portos

Partilham da nossa mesa
E bebem do nosso vinho
Vermelho da framboesa
Que tinge o tempo sozinho

E o tempo escorre fluido
Pairando sobre oceanos
Fundos de fulgor perdido
Na correnteza dos anos

Em longa fila arredia
Empurram-se pensamentos
E o que resta ao fim do dia
São outros dias cinzentos


Imagem de: http://thelightbulbs.typepad.com.

quarta-feira, maio 14, 2008

Em longa fila indiana





Em longa fila indiana
Postam-se vivos e mortos
Que partilham nossa cama
E atracam em nossos portos

Partilham da nossa mesa
E entoam histórias antigas
De uma existência coesa
Que se parte com as brisas

Que parte para a incerteza
Para o ontem feito amanhã
O caçador feito presa
A preguiça feita afã

Em longa fila indiana
Perfilam-se os pensamentos
Presos numa fúria insana
Anárquicos como os ventos



Imagem de: http://thelightbulbs.typepad.com.

Agora que revejo esta redondilha maior, verifico que se trata de um poema menor. Só para que se saiba a opinião do autor... Ainda assim, uma vez que já se encontra publicado, seja!... Por cá fica. Como amostra de um momento de pouca inspiração.

sexta-feira, maio 09, 2008

Os ganhadores de prémios





O poeta pateta cose três linhas inócuas
A sociedade não entende exactamente mas aplaude
As senhoras apreciam os contornos de erotismo
Que artístico deve ser o poeta na intimidade
Os cavalheiros batem palmas e atribuem galardões
O presidente ratifica o Tratado de Lisboa
E tudo está perfeito na Europa Ocidental
Três belas linhas elegantes subalimentadas
E Pessoa não passa de um qualquer amanuense
Que bebe copos e arrecada segundas posições


Imagem de: www.fictionwise.com.

quinta-feira, maio 08, 2008

Gato morto





Gato morto na berma da estrada
Onde se juntam restos de pó
Com a boca de vermelho pintada
E a língua retorcida num nó

Gato morto na vala da rua
Com o corpo dobrado num novelo
De olhar opaco sob a alta lua
Toda amarela contra o teu pêlo

Gato morto que encontraste a paz
De um mundo vago, crepuscular
No paraíso não caçarás
Nem mais terás sequer que miar


Imagem de: http://members.iglou.com.

terça-feira, maio 06, 2008

A cidade está cheia de velhos





A cidade está cheia de velhos tristes e alegres
E de coisas que o tempo fez irreconhecíveis.
Está tudo mudado, tudo tão mudado na cidade!
O presidente mandou que se mudasse tudo,
Construiu prédios altos, pavimentou o chão cinzento,
Mudou as pombas para o pombal, demoliu o coreto antigo...
Já não se ouvem fanfarras nem os gritos das marionetas
E o próprio Marquês civilizou-se e ficou policiado.
O metro passa largamente a imitar os subúrbios
E só há cinema em shopping centers livres de tabaco.
O sol que ontem brilhava apagou-se à imagem
Das velhas fotos de família esborratadas, carcomidas,
Um bigode aqui, um ar sisudo além,
Um poço escuro de estranheza
Da vida que talvez nunca tenha havido.
E os velhos, tantos velhos, tristes e alegres,
Vão pingando lentamente das artérias ainda meio vivas...


Imagem de: www.ciberjunta.com.

segunda-feira, maio 05, 2008

Maio na terra do nunca





A revista relembrava o Maio de 68
E pedras rolaram
Voaram das páginas ordenadas
O cheiro agudo dos automóveis ardidos
Os capacetes negros dos guardadores de rebanhos
Os cabelos desgrenhados ao vento louco do norte
Libertário
Salto temerário na branquidão vazia
Onde tudo nunca pode ser construído e destruído
Como um poema desconhecido sem estrutura nem ideia
Meu filho que nasceste em mil novecentos e noventa e oito
No meio das podas insensíveis de todas as florestas
Das moralizações paradoxais e das proibições
Dos fluxos migratórios de patos bravos em queda livre
Dos crimes especulativos e multinacionais
Da industrialização plastificada da expressão
E tudo em ti é avaliado e escrutinado
És um bit menor numa base de dados deslocalizada
Todos os incêndios acalmados prestes a explodir
A ruína asséptica da mordaça na utopia
E quem se importa já? Quem canta?
Os revoltados que fumam charros em sofás?


Imagem de: http://diversoutsita.free.fr.

sexta-feira, maio 02, 2008

Vou partir para Timbuctu





Vou partir para Timbuctu
Onde as jovens casadoiras
Dançam noites inteiras
Com as peles lisas brilhando
Aos vibratos de fogueiras
Vou partir para Xangai
Onde os velhos resistentes
Fumam cachimbos gastos
E dormem a vida toda
Sonhando com impérios vastos
Vou partir para a Lapónia
Onde os duendes ufanos
Trabalham todos os dias
Nos seus palácios de gelo
Em fábricas de alegrias
Vou partir para a Martinica
Onde os maiores feiticeiros
Encharcados em rum forte
Em dialecto mesclado
Decidem a humana sorte
Vou partir para a Tasmânia
Onde no meio do mato
Se escutam gritos perdidos
Pântanos borbulhantes
E pássaros coloridos
Vou partir para o Saara
Onde atrás do vento antigo
Que cresce ao ritmo dunar
Se desvendam mil oásis
Onde os djinns vão descansar
Vou partir para o futuro
A bordo de um longo combóio
Que transporta sensações
Para a terra da magia
Dos risos em turbilhões


Imagem de: www.road-to-the-isles.org.uk.
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