Ao som de uma banda de funk
Cravam-se os sulfúricos canais venusianos
Na pele dos que se ocultam nos seus risos cautelosos
Das vidas percorridas em estradas secundárias...
Tão rápidas, tão céleres, paralelas auto-estradas!
Tão céleres se escapam das mãos invalidadas,
Dos olhares sequiosos de vidas imaginadas,
Dos lábios ressequidos e roubados de evidências!
Enquanto os lábios jovens vão sorrindo arrogâncias...
São arrogâncias rubras e inocentes
Que ignoram o pulsar mental do calendário.
Imagem de http://systsol.bhazeguzer.com.
Blues
Arranha-me a pele felinamente,
Beijos na boca, seca e aguerrida,
Fluem rios de metal entre veias e artérias,
Arrepiando até à foz, no centro da cabeça:
Extravasam dos olhos, narinas e ouvidos...
O pulsar do blues agrário, santo e vibrante,
O Deep South da existência sob o sol.
Até que a pop irrompe como uma áspera seca
Das entranhas telemóveis saltitantes, pragas.
Então, regressa o sol imenso no algodoal,
Nesta penitenciária ardente onde vivemos...
Imagem de www.dsl.psu.edu.
Recordar é morrer
Recordo-me, recordo-me, recordo...
Mas recordo o quê precisamente
Se todos os sentimentos se desintegram
E todas as vivências são metamorfoses?
Vejo-os a todos: poeira cósmica tão fina,
Cristais líquidos fundidos, caleidoscópicos,
O bem e o mal, o zero e o absoluto,
Os rostos sorrindo como sorrindo congelados
E os mortos como se não vivessem morrendo...
Nasci a um sábado, numa madrugada glaciar,
E só disso julgo recordar-me por mo terem recordado
Com palavras logo diluídas no imenso caldo apocalíptico
Que é não haver memórias mas apenas impressões. Imagem de www.flickr.com (foto de Lunaryuna).
Humanos à volta da mesa
Os humanos, copa mais elevada da árvore animal,
Têm, geralmente, tronco, cabeça, membros e alguns dentes
E são seres gregários que se cansam mutuamente,
Como se auto-amam e desprezam mutuamente,
Abominando melgas e outros bichos menores.
Mas... olha como o coelhinho é lindo!
Olha a natureza inter jaulas e gaiolas,
Tão bela no ecrã fechado, bela e livre!
Amam, invejam, ignoram e odeiam
Como se tudo deslizasse num fio de raciocínio...
Sentam-se em família, em torno de animais assados
E bebem para esquecer que não sabem o que agradecer. Imagem de www.donkichi.com.
Canícula
No topo de copa nenhuma
Não canta pássaro nenhum
E folhas nenhumas fervilham
Sobre os passeios liquefeitos.
Como tornar lírica a temperatura?
Ou se está bem ou doente,
Doente na vida... Quem não está?
Rodeiam-me múltiplos franceses com sotaque,
Um sotaque seu, de trabalho e risco,
Os que escaparam ao sono milenar
Em canículas fornalhas de usinas nacionais.
Talvez queiram trabalho e não emprego...
E porque não hão-de querer ambas as coisas?
Empresários torcem narizes e choram amarguras,
Chupando charutos em jantares de inimigos.
Imagem de www.infinitygc.com.au.
Babilónia
Pentear...cabelo!
Tomar...café!
Fumar...cigarro!
Escrever...poema!
Limpar...casa!
Comer...jantar!
..................................
Vêde bem os deuses da antiga Babilónia,
Urrando em regozijo, afagando as panças grandes,
Gargalha cada um dos seus dentes aguçados,
Gargantas infindáveis em sons cavos e lentos,
Vêde bem os deuses da antiga Babilónia,
Como nos governam lá das suas sepulturas!
Tudo é aparência, ruína, tédio, memória
E a existência eterna como a alma interminável...
Deixem-me dormir sonhos de anjos sorridentes,
Sorridentes e severos, justiceiros implacáveis,
As suas asas de fogo, as suas espadas de fogo!
Porque só no sonho fundo há visões do paraíso,
Colinas verdes, tão verdes, muito além do infinito,
Porque a humildade do sonho é já tudo o que nos resta...
Imagem de www.item.ntnu.no.
Gótico
Carregai-vos de negrume nas roupas e nos gestos,
Como as nuvens carregadas de pesadelos funestos...
Como elas, sobre os prédios, escorregai para poente,
Que lá vos esqueçais do sol eternamente!
Que em torno à lua fria para sempre orbiteis,
No espaço imensurável, sem rumos e sem leis,
Pois tudo é ilusório e a cor inexistente
Na estreita compreensão de estar vivo e de ser gente... Imagem de www.selleri.org.
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