BAÚ DE MEMÓRIAS
Reúnes-te com a família, com os amigos, credo, ainda sentes o cansaço da folia da noite plena até de madrugada a martelar, a martelar cabeças, o cheiro acre do alho ainda te rasteja no interior das narinas como um ninho de vermes luminescentes, um balão solitário morre ainda em fiapos incendiários como linguetas do espírito santo derramando-se na praia onde alguns acordam aos primeiros raios do dia... Dói-te o corpo de muitas cervejas. Já estão todos em casa a dormir, salvo nas casas onde os pequenos saltam para o sofá e ligam o canal com as animações japonesas. O céu de cinzas de fogueiras esgotadas derrama suavemente o seu manto húmido sobre o Porto e arredores, as ruas ainda meio vazias a ecoar humanos excessos que se escoam lentamente em todas as direcções até ao suave adormecer. Saio para pagar contas, fazer compras, ninguém me convidou para o São João e ninguém me acompanha nas tarefas diárias que realizarei automaticamente, apaticamente, mornamente, depois de um café tão negro e tão fugaz. Sei que um dia o São João me virá bater à porta... “Vinha convidar-te para festejares comigo”. “Pode ser, mas não me quero deitar de manhã”. “Não fujas à vida. Anda. Depois se verá”. Não tenho pressa. Os dias são tão espontâneos! Imagino o céu multiplicado em miríades de estrelas cadentes, a excitação dos astrónomos encerrados em observatórios, os astrólogos a traçar febrilmente cartas astrais actualizadas, balões de São João, tão lentos no seu esplendoroso percurso inescapável... Não tenho pressa. O dia também não.
Maia, 24 de Junho de 2004
Imagem de: http://cidadesurpreendente.blogspot.com/.