quinta-feira, fevereiro 20, 2020

Lamento (à minha avó)


A minha avó veio da aldeia e da cidade
De uma pelo oposto e o oposto
De outros tempos, gestos, danças
Ora ponha aqui o seu pezinho, chegadinho
E foi encanecendo, mais do que o normal
Como se o cabelo dela sempre fora branco
E o olhar cinzento, triste, alegre, duro e meigo
Cobriu-me de beijos, desgostei
Encheu-me de abraços, estranhei

Um dia, incerto dia, ficou estranha
Fantasma que acordou num dia estranho

E, não sei porquê, cruzámos a parede...

Imagem de: Marfilpe

Recordação do meu filho em criança


Revejo um café ou bar
Junto a um jardim verdejante
Que iluminou os meus dias
De solidões fugidias
Com o teu riso constante
De vida nova a brilhar

A inocência acreditava
Em édens primordiais
E em flores de primavera
Em sonhos que já esquecera
E revivia, essenciais
Na infância que se mostrava

E reinventámos o mundo
Tu, no tempo que era teu
Eu, nalgum vago retorno
A infância não é transtorno
E o cosmos não era ateu
Mas antes um crer profundo

Imagem de: urbanplatehealth.com

sexta-feira, fevereiro 07, 2020

Quando o poeta morreu


Quando o poeta morreu
Reuniram-se os amigos
E os familiares antigos
Na sala que o acolheu

Murmúrios entrecortados
E, fora, também o vento
Sob o céu baixo, cinzento
E filas de carros parados

Gargalhava alguém defronte
Pardais bicavam sementes
Gatos gemiam prementes
E Vénus surgiu no horizonte

No exterior da divisão
Escutei alguém conversar
E, com candura, indagar:
Poesia? Poesia por que razão?

Imagem: O peregrino sobre o mar de névoa, de Caspar David Friedrich (1818)

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