Da encenação na arte à encenação na vida
Por mais que se diga e rediga o contrário, por mais que se explique até à exaustão a essência da arte, o leitor, o ouvinte, o observador, tendem permanentemente a encará-la como um retrato do artista, a arte como uma espécie de auto-retrato e, sobretudo mais ainda, um claro retrato de si mesmo.
Sucede que o artista tem, regra geral, um interesse estético na sua criação, o qual de algum modo se sobrepõe a outras intenções possivelmente presentes na obra e que tal se pode afirmar, inclusive, quando se fala, por exemplo, de uma tela hiper-realista. Assim, toda a obra de arte é uma encenação. E a encenação situa-se sempre em outros universos. Noutras palavras, nunca imaginei apelidar um diário ou uma biografia, hetero ou auto, de obra de arte. E aí reside um dos maiores logros do consumo da arte que, actualmente, chega a todos e a cada um - feliz e infelizmente.
Logro maior, entretanto, é a encenação da vida que tão naturalmente se pratica neste país em que doutores e engenheiros contam com o respeito geral (e, nos últimos anos, quem, melhor ou pior, acumula contas bancárias e cargos duvidosos), respeitados mesmo que o não sejam de facto, e em que os restantes são "todos iguais".
Não precisamos de um Salazar nem de um Marquês de Pombal para cultivarmos a cinzentidão, a homogeneidade e a mediocridade. Nenhum Dom Sebastião, pequeno rei medíocre, aliás, nos poderia salvar do nosso destino comum e esquizóide: o de um povo atarantado que raramente sabe que caminho trilhar e sempre lança a culpa da confusa polissemia existencial para o vizinho do lado.