quarta-feira, outubro 28, 2009

Da encenação na arte à encenação na vida

Por mais que se diga e rediga o contrário, por mais que se explique até à exaustão a essência da arte, o leitor, o ouvinte, o observador, tendem permanentemente a encará-la como um retrato do artista, a arte como uma espécie de auto-retrato e, sobretudo mais ainda, um claro retrato de si mesmo.
Sucede que o artista tem, regra geral, um interesse estético na sua criação, o qual de algum modo se sobrepõe a outras intenções possivelmente presentes na obra e que tal se pode afirmar, inclusive, quando se fala, por exemplo, de uma tela hiper-realista. Assim, toda a obra de arte é uma encenação. E a encenação situa-se sempre em outros universos. Noutras palavras, nunca imaginei apelidar um diário ou uma biografia, hetero ou auto, de obra de arte. E aí reside um dos maiores logros do consumo da arte que, actualmente, chega a todos e a cada um - feliz e infelizmente.
Logro maior, entretanto, é a encenação da vida que tão naturalmente se pratica neste país em que doutores e engenheiros contam com o respeito geral (e, nos últimos anos, quem, melhor ou pior, acumula contas bancárias e cargos duvidosos), respeitados mesmo que o não sejam de facto, e em que os restantes são "todos iguais".
Não precisamos de um Salazar nem de um Marquês de Pombal para cultivarmos a cinzentidão, a homogeneidade e a mediocridade. Nenhum Dom Sebastião, pequeno rei medíocre, aliás, nos poderia salvar do nosso destino comum e esquizóide: o de um povo atarantado que raramente sabe que caminho trilhar e sempre lança a culpa da confusa polissemia existencial para o vizinho do lado.

segunda-feira, outubro 26, 2009

Os comentadores





Sentam-se em mesas redondas
Mesas quadradas, oblongas
E iniciam o sermão
Falam de deuses carnais
Sorridentes e mortais
No púlpito da televisão
Deus vai durar uma prece
Deus deve arder na fogueira
Deus sabe, deus desconhece
Deus tem a resposta certeira
Mas só eles são omniscientes
Desconhecidos presentes
Futurólogos insolentes
Do espelho da sociedade
Quem serão eles, na verdade?
E a fé que transporta a gente
É uma fé decadente
Destinada a dar razão
Às palavras do sermão
O orador disse, é real
Mas quem são eles, afinal?
Pregadores superficiais
Do nada que se transforma
Em linfomas razoáveis
De teses impenetráveis
Onde não vive a inocência
Os charlatães da ciência


Imagem de: http://images.spaceref.com.

terça-feira, outubro 13, 2009

Ismos





Vinha agora mesmo pensando
Em estoicismo e epicurismo
Panteísmo, paganismo, sensacionismo
Cristianismo, satanismo, solipsismo
Em Pessoa orthónymo e heterónymo
Na fractura que me não fractura
Dispersão que me não dispersa
Vinha pontuando pensamentos
E pensando talvez em coisa nenhuma
Ou pensando talvez que pensava
Sentindo coisas que já não existem
Porque passaram como os automóveis
Ou talvez não porque tudo é uma massa
Como a massa encefálica dolorida
Tomada de maçãs e cobras estrangeiras
E a teoria da Relatividade é tão bela
Como o braço perdido da Vénus de Milo
E todos os ismos em istmos desertificados


Imagem de: www.csf.itesm.mx.

terça-feira, outubro 06, 2009

Chuva outonal





Quantas árvores baixas aves amarelecentes
Sob a chuva aguda em sons laminosos
Dos céus outonais plúmbeos lacrimosos
Sobre o hemisfério tombam decadentes

A roda do mundo silencia o brilho
Com o silêncio novo da repetição
E tudo é trabalho esforço abnegação
Em guarda paciente como quem espera um filho


Imagem de: www.livinggallery.cc (tela de Karen Ricciuti).
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