Quem é Joaquim Camarinha? (2) - Religião
O Eu realizou uma pequena entrevista temática com Joaquim Camarinha. Nesta, optou pela clássica pergunta-resposta, sem subdivisões, para quem quiser ler...
Eu - Noto na tua poesia uma certa animosidade contra a religião. Não acreditas em religião?
Joaquim Camarinha - Não acredito em organizações porque acho que em geral se perde o essencial para se ganhar o acessório.
Eu - Como assim?
JC - Precisamente isso. Vi coisas. E tenho dificuldade em acreditar.
Eu - Parece-te construtivo?
JC - A construção é algo de pessoal.
Eu - A construção de uma espiritualidade?
JC - E a sua expressão. Há tanta ou mais espiritualidade na construção de um objecto de arte ou em qualquer outra construção do que em mil rituais cujo significado se perdeu há muito e que alguma vez terão correspondido a necessidades sociais que já não existem.
Eu - Se pudesses, punhas um ponto final em todas as religiões?
JC - Não punha ponto final em nada. Não me diz respeito. Gosto de construir e deixo a destruição para quem a preferir.
Eu - Mas se encaras algum tipo de espiritualidade e criticas as religiões organizadas, como é que podes não assumir uma postura mais iconoclástica?
JC - O que eu assumo está na minha poesia. Enquanto não me forçam agressivamente não tenho que me defender agressivamente.
Eu - Mas acreditas ou não num Deus?
JC - A questão é se um Deus acredita em mim.
Eu - Pareces-me um pouco zangado...
JC - Pareço-te agressivo?
Eu - Eventualmente.
JC - Mas não sou. Muita gente parece ter um sério problema com a honestidade...
Eu - Não te achas agressivo em alguns dos teus poemas?
JC - A arte tem que ter uma certa força, sob pena de não transmitir emoções. E os poemas são construções formais do que se convencionou chamar arte.
Eu - Significa isso que não correspondem à realidade?
JC - Significa que correspondem a uma parte da realidade. E que o facto mais real da realidade é que se encontra em permanente mudança.
Eu - Não acreditas na permanência...
JC - Acredito numa permanência em que nada se repete jamais.
Eu - Ou seja, não acreditas na permanência do amor, da civilização, da cultura?
JC - Acredito que os caminhos são muitos, que o movimento é permanente e que nada é previsível.
Eu - Sentes-te feliz assim?
JC - A busca humana talvez não seja em direcção à felicidade, por ela ser subjectiva e fugaz por natureza, e sim em direcção ao conhecimento, a única coisa que, embora eventualmente dolorosa, nos pode aproximar da divindade.
Eu - Então acreditas em Deus...
JC - Acredito que talvez estejamos aqui a conversar. Em que é que acreditas?
Eu - Acredito que sou o entrevistador.
JC - Os papéis alteram-se facilmente.
Eu - Gostas de palavras...
JC - Desgosta-me a poesia que tem por base meramente a palavra e a sua exploração. Não me apetece ser muito metalinguístico. Gosto mais de imagens e procuro escrever de forma imagética. Aliás, escrevo naturalmente dessa forma.
Eu - E parece-te que isso agrada a todos?
JC - Nada nem ninguém agrada a todos. Em última instância, não se agrada a ninguém porque cada um sabe apenas interpretar-se a si mesmo, ainda que por intermédio de outros.
Eu - Existe, então, uma incomunicabilidade permanente?
JC - Tão permanente quanto possa ser e inerente às próprias limitações da linguagem.
Eu - Mas o mundo tem funcionado...
JC - Possivelmente mais por inércia. O universo está estruturado de forma a funcionar.
Eu - Então, alguém ou algo o estruturou...
JC - A conclusão parece-me apressada e mais movida pelo desejo de acreditar do que por qualquer tipo de lógica intocável.
Eu - Deus, a existir, é responsável por tudo o que acontece?
JC - Se Deus, a existir, não mantiver um nível razoável de responsabilidade, o universo encontrar-se-á em auto-gestão.
Eu - Diz-se que Deus nos dá liberdade para escolher.
JC - Diz-se muita coisa... Qual foi a última vez em que influenciaste de forma verdadeiramente decisiva o teu destino?
Eu - Parecem-me ideias algo deprimentes...
JC - Mas não são. Gosto de me divertir e divirto-me, inclusive, a escrever poesia. Mesmo quando eventualmente não parece. A poesia é, em parte, a minha maneira de fazer palavras cruzadas.
Eu - Não tens receio de que um dia leias o que disseste e venhas a achar que não sabias exactamente do que estavas a falar?
JC - Não tenho receio de nada. Tudo corresponde a um momento. A maior espiritualidade que pode existir é vivermos de acordo connosco mesmos em cada momento. Isso e não termos dores de cabeça, não estarmos enjoados, não termos que perder a calma, podermos beber uns copos e falar de coisas sérias e de disparates com quem nos ouça de livre vontade, tudo ao mesmo tempo. O resto é conversa.
Declarações recolhidas em 12 de Novembro de 2005. Foto do Eu.
4 Comments:
Foi muito bom ler estas palavras,aliás houve uma frase marcante. Muito marcante, mesmo.
Gostei da foto, gosto de observar mãos:)dizem sempre algo...
As mãos pertencem a uma foto e uma foto é sempre diferente do mundo em movimento... digo eu.
Qual foi a frase muito marcante? :)
Sem dúvida essas mãos num mundo em movimento serão muitos diferentes.:)
"A maior espiritualidade que pode existir é vivermos de acordo connosco mesmos em cada momento"
Reconhece?
Reconheço, claro. Fui eu quem escreveu isso. E apesar de tantas e tantas vezes ter pensado uma coisa e feito outra, cada vez mais me aproximo nas acções dos pensamentos.
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