quarta-feira, maio 27, 2009

A cidade



A cidade é uma interessante colmeia de contrasensos e paranóia, de cujo mel gosto de me cobrir e besuntar num curioso fenómeno de desmaterialização observadora que algumas abelhinhas de instintos mais guerreiros não deixariam de encarar desconfiadamente se ao menos me considerassem suficientemente digno de um rasgo, um instinto mascarado de pensamento lógico, como certos homens se travestem nos carnavais e certas mulheres se sentem confortáveis com o nó de uma gravata em torno do pescoço esticado.
Gosto de a percorrer no meu próprio passo e permitir que em mim fluam caudais de breves interrogações sem qualquer hipótese de resposta útil nem, talvez, um notório interesse para o desenvolver de qualquer movimento... Porque é que aquele grita e gesticula para um telemóvel inerte? Porque é que aquela passeia a aparência numa pose comprometida, como se todas as energias de todas as barragens e centrais nucleares não servissem senão para manter acesos os holofotes que permanentemente a assediam? Porque é que o outro, ósseo, pálido, esquálido, fixo, imerso num sorriso estranho e idiota, gasta os dias no mesmo passeio curto com o intuito único de pedir cigarros e moedinhas? Porque é que os velhos se sentam em bancos desgastados, lentos, quase imóveis, envelhecendo a par da própria vaidade, sem sequer o prazer vagamente atrevido de deitar cartas por dinheiro enquanto aguardam a chegada mensal da próxima prestação de medicamentos? Porque é que alguém chora e ri intercaladamente como se cada instante fosse um universo oculto e isolado? No fundo, por que razões me permito este fluir quase maníaco de interrogações desconstrutivas?
Tudo isso me agrada de uma tonalidade quase doentia e sado-maso, como aqueles momentos que antecedem certos pôres-do-sol, quando uma determinada luminosidade se introduz no cérebro, pressionando a caixa craniana até à enxaqueca e ao vómito. Mas não me oferece a paz. A paz, essa paz subjectiva e relativa que alimenta os poetas escrevinhadores e os outros, pertence a uma dimensão diferenciada: a dos passeios de cimento ou piso português, das casas desocupadas, dos candeeiros longilíneos, dos vidros displicentemente limpos, dos automóveis mal estacionados, das portas entreabertas e ainda as árvores, flores, relvados, o passaredo, os cães ridículos com as suas caudas pendulares, os gatos caçadores e tudo o que se move instintivamente do céu ao mar. Numa palavra, tudo o que não se exprime em nenhuma das línguas que desabam do caos bíblico que, uma vez mais e sempre, esmaga e pisoteia quem ouse estirar-se e olhar em direcções não antecipadas. Porque a cidade é um campo de batalha e a guerra é uma palavra
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Imagem de: http://wallpapers.bpix.org.
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