As máscaras
Parece que sempre mudei de ideias... Escrito nos dias 3, 4, 6, 7, 8, 10 e 12 de abril.
I
As máscaras, os álcoois, a rua diferente
A televisão vomitando números extraordinários
O cansaço, o hipnotismo dos noticiários
A economia, bola com corrente
Contam, morre gente pelos hospitais
E todo o mundo treme e altera o ar
Dizem que o planeta inteiro vai mudar
E por todo o lado cerram-se os taipais
Mas eu acho que sei o que é morrer
Morrer a sério, mesmo estoicamente
Morrer com força ou cobardemente
Procurar razões claras e não haver
Eu acho que sei quem mais morre
Quem vive só e se quer mais forte
Quem existe entregue só à sua sorte
Num tempo que tão em vão percorre
Eu choro, ou choraria se soubesse
Por quem teme sozinho e no engano
Procura em vão traçar um frágil plano
E só quando a luz raia se adormece
Eu sinto, tanto quanto sentiria
Pelos que a solidão e a ilusão abraçam
E que, navegando, encalham e espaçam
E não confessam nada à luz do dia
II
Germinam flores brancas no jardim
No quadrado nosso da entrada
E mesmo com a relva tão ratada
A natureza segue e cresce assim
Porque a vida é um caos organizado
Em torno de um bizarro rodopio
De encontros, choques e vazio
E brilhos como um dia ensolarado
Em casa, juntos aguardamos
Que tudo se resolva ao natural
E rimos de graçolas que, afinal,
São um campo aberto e semeamos
III
Pingos pingam nos passeios
E voam contra as vidraças
E ecoa no chão das praças
O silêncio dos bloqueios
Rebenta-o um megafone
Que manda "fiquem em casa"
E passa como uma asa
Que parte à luz do ciclone
A Páscoa leva-a o caminho
E o dia adormece estranho
Lentamente, em tom de estanho
Levemente, em cor de vinho
III.V
E aterram, reverberam pelas capitais
Como bombas transformadas em canções
E há quem cante o Bella Ciao nas televisões
Em ingénua resistência a dilúvios mundiais
Irmãos, irmãs, protejam o olhar
Que a alma é tudo o que existe
Memória diluída em som triste
E alegre, também, como o despertar
III.V.II
As gotas adormecem nos raios do sol brando
Como que deslizando em direção à sesta
E contam-se os minutos da hora que nos resta
E enche-se a memória de imagens deflagrando
Tantos já partiram com as vozes distorcidas
Que nunca voltarão, nem choros, nem sorrisos
Crescendo na distância, além dos paraísos
Um dia, enfim, comidos pelas eras concluídas
O cosmos que se move esvazia-se de vivos
Para todos, que algum dia não viram o chegar
Do silêncio perene que sempre irá pairar
E que viveram vidas, sonharam objetivos
E o dia passa lento e é doce de algum modo
Como na fluidez do sonho confundido
Tão cheio de certezas, tão pleno de ruído
E, no final, ideia e parte de algum todo
IV
Vi, em absoluta estreia, sobre os galhos toscos
À esquerda da estrada, claras e brilhantes
As folhagens verdes e rumorejantes
Cruzadas pelo frio e pelos raios foscos
Foi o bando selvagem sobre o lago fundo
As cores indecisas na frente do hotel
E em longas talhadas de um largo pincel
Saber que a surpresa reconstrói o mundo
V
Domingo de Páscoa, Isabella, Easter Sunday
Ausência dos sinos, falta do compasso
Estranha-se o tempo perdido do espaço
E o ocultado e sereno agnus dei
Há uma urgência de normalidade
Videoconferência, telefonema
Devo transmitir, como num poema
O ritmo, a rima, a intensidade
Falta-me apenas quem está sem cá estar
Os vivos e os mortos, toque intermitente
Estou, estás, tu, indagar da gente
Até outra Páscoa que o tempo emprestar
Imagem de: Psicologia.pt
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