Welcome to the twenties
Os meus pais nasceram algures nos loucos anos
Entre habitações vetustas e espessos cortinados
Hemingway bebia absinto em esplanadas de Paris
E as raparigas dançavam o Charleston e o Foxtrot
Há parvos que dizem que Hemingway arruinou a escrita
E os que dizem que gostos não são para discutir, mas eu discuto
E digo: são parvos, cretinos, arrogantes, ignorantes
Que a palavra é um mero fio solto no tear do tempo
Inclemente objeto de aço inauditamente fino
Lúgubres Cloto, Láquesis e Átropos, imparáveis
Sobre o progresso, a economia, luxo, miséria, automatização
O vrrum-vrrum dos futuristas comunistas e fascistas
A máquina, intensa e densa máquina moedeira
Na verdade, alguma, intenso caos e chinfrineira
E o que sabiam os bebés dos anos loucos desbotados
E o que sabem todos, se quiserem, entre tais emaranhados
Nada sabem e eu sei bem que o não sabem
E o que sei, que inútil é julgar saber nos anos vinte
Tudo em simultâneo, fundamente vivo e morto
Gargalhadas ecoando, tão perdidas no etéreo
No afundamento eterno das certezas mais que vagas
E nada recupero, nem o que nunca eu existi
Vrrum-vrrum e bang e crash e o silêncio no final
Que lindo é o nosso mundo, que obra de relojoeiro
Que lindo é e nada recupero, nunca nada por inteiro
O tempo passa e nada existe ou sei lá bem
Nada salvo, nada salvo, nada salvo, nem ninguém
E circularizo-me em memórias todas distorcidas
Os meus pais, Hemingway, o Charleston, o Foxtrot
As guerras, o progresso, a economia, o globalismo
E, com palavras, não os sei vingar, nunca salvar
Só escrevo e escrevo e escrevo algum garatujar
Pintura de: Almada Negreiros
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