quinta-feira, janeiro 29, 2009

Janeiro submerso





Esta humidade é uma vasta cabeleira
Sufocando Sansões e anões de igual modo
Um espaço impenetrável sobre a terra inteira
Um mar pré-câmbrico afogado em lodo

Um lodo que corrompe tudo o que se move
Com modos de adolescente irreflectido
Que fala em demasia e nunca se comove
Com a miséria alheia e a ausência de sentido

Janeiro imenso, tenso e lamentável
Cobrindo os dias de uma sombra compacta
Numa redoma baça de vidro inquebrável
Onde eis-nos prisioneiros da infinitude exacta

quarta-feira, janeiro 28, 2009

O pinhal do cuco





Ao longe, sobre um poste de muito alta tensão
Pelos pinhais, com o cheiro a sol e resina do Verão
Um cuco brincava às escondidas
Era um tempo belo e lento de estreitas estradas vazias
Um tempo sem prestações, avaliações e correrias
O futuro brincava às escondidas
Beber Sumol, comer pão com chouriço, tudo era sereno
Quando as flores de tojo cobriam o terreno
E após o silêncio o cuco brincava
Galgávamos então encostas de cumes rarefeitos
E tornávamos ao lar dos dias longos, perfeitos
O cuco ainda lá está, nunca partiu
E o dia é imorredouro como quem o viu


Imagem de: www.ancientworlds.net.

sexta-feira, janeiro 23, 2009

Limbo





Com onze, doze, treze anos
Que tenho uma multidão diante
Vivia num limbo estranho
Que já não era deslumbrante
Ainda não era alucinante
E estava distante da lógica
E ainda mais da sua sombra
O mundo como uma tela abstracta
E porque se faz tanto barulho
Já não existirão limbos sossegados
Ou os limbos só existem na memória
Cantos quentinhos, aconchegos
A anestesia sem efeitos secundários
Mas os limbos são coisas pessoais
E há tanto já fugi da casa humilde
E parti numa espécie de primeira classe
Com assentos de ferro forjado, gelado

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Chuvisco



Nas fontes secas da Antiguidade
Por entre cigarras e olivais
Entre laranjais e ecos de saudade
Vibram sóis altivos, meridionais

Clio percorre férteis pradarias
Altas montanhas, vastas enseadas
Sombras furtivas e ruínas vazias
E em todo o lado histórias são narradas

De paz, de guerra, de amores imortais
De vinho escorrendo e de gente rindo
De danças, canções, folclores nacionais
Da brisa que adocica o tempo infindo

E entretanto, aqui, na cidade triste
Cai miudamente uma chuva fria
Que é tudo o que há, tudo o que persiste
Na alma europeia que mal alumia

quarta-feira, janeiro 21, 2009

A sensação de perigo face à dinâmica universal desigual





Porque é que sob as unhas se acumula tanto lixo
E o cotão se varre para debaixo dos tapetes
E os pregadores pregam sangue, chamas e não água benta
E o universo crê justificada a perpétua morte
Pela criação de mais coisas destinadas a morrer?
Já quase tudo perdi ou nunca cheguei a ganhar
Perdi a fé inclusive, tenho tão pouco a perder
Mas perco o universo inteiro por tão pouco me restar
E nem conseguir dormir nem conseguir acordar...


Imagem de: www.daviddarling.info (colisão de galáxias).

terça-feira, janeiro 20, 2009

Tempo de crise





Frio, sol, chuva, granizo, o céu todo num só dia
Cai em trambolhões sonoros e já ninguém o estranha
É tempo de crise dura e da mais fina ironia
Se o tempo varia assim numa abundância tamanha

A dona deste café já não teme a trovoada
Nem os discursos ocos que inundam a televisão
Chama-lhes fala-baratos e diz já não crer em nada
Parecem todos santolas com a casca a arrastar no chão

E o vento sopra que sopra e arrasta tudo à passagem
E os alegres manda-chuvas traçam previsões forjadas
É um deserto molhado por uma estranha miragem
Que é toda jogo de espelhos e crise de almas caladas


Imagem de: www.planetapesca.com.

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Sol nascente de cinzas





Fogos de artifício voam da janela do meu carro
Da janela entreaberta as cinzas do meu cigarro
As cinzas luminescentes traçando esboços no ar
Ignoro para onde vou, trago o destino a pairar

Trago o destino na manga que esvoaça transparente
Esvoaça como a águia fundida no sol nascente
E o sol encandeia a vida, deixa rastos no devir
Ignoro de onde vim mas sei onde quero ir

Vou com a força do vento que me revela o caminho
Caminho uma longa estrada onde nunca estou sozinho
Estou como um fotão breve que apagado permanece
Pois sei onde quero estar e o fogo nunca esmorece

sexta-feira, janeiro 16, 2009

O silêncio





O silêncio é de ecos feito
Silêncio, êncio-êncio, cio
Que ocupa o espaço vazio
Dos pensamentos a eito

Como catedrais imensas
Com lápides tumulares
E gárgulas nos espaldares
Desenhando sombras tensas

Como planaltos de neves
Com raios de sol cegantes
Abraçando os viajantes
Em avalanches breves

Como ruínas inglórias
Com móveis cobertos de panos
E aranhas tecendo os anos
E o som seco das memórias

Como fotos do passado
E roupas que o tempo esgaça
Carcomidas pela traça
Em preto e branco pesado

O silêncio é comprido
Fantasma ensurdecedor
Que ocupa o ódio e o amor
E a tudo nega o sentido



Imagem de: www.mouscrou.be (tela de Pierre Marechal).

Tabaco e aspirina





Sinto a ganapada aos saltos
Uma enxaqueca acintosa
E saltam até às nuvens
Da inconsistência absoluta
E as empregadas de bata
E os polícias de uniforme
E os deputados sorriem
E os professores desesperam
E os relógios tiquetacam
E as campaínhas atacam
E a cabeça lateja
Tudo faz pouco sentido
Traga-se uma aspirina
Com um cigarro evasivo
E quem se importa em estar vivo


Imagem de: http://health.learninginfo.org.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Nuvens negras





As nuvens negras esmagam
Tudo o que por baixo mora
Almas que cedo naufragam
Nas vagas da vida fora

E as casas e as ruas
E as florestas vazias
E os troncos das árvores nuas
E as noites e os dias

Esmagam as flores nos prados
A relva seca, as geadas
Os mendigos esfomeados
E as pessoas caladas

Esmagam o interior dos lares
E as gaiolas do trabalho
Restaurantes, cafés, bares
A estrada recta, o atalho

E é de tal forma potente
A força rude dos céus
Que além de esmagar a gente
Esmaga a ideia de Deus


Imagem de: www.kancoll.org (fotografia de Mark Dunn).

quarta-feira, janeiro 14, 2009

A natureza humana





O homem sai da missa para o adro da igreja
É uma manhã de sol e a aldeia é branca caiada
Estala um chicote no céu, começa o jogo do pau
Abrem cabeças, estalam ossos, uivam lamentos
E as povoações conquistam-se mutuamente
Em achaques de raiva e patriotismo local
Em domingos solarengos, no adro, após a missa
E foi assim que em Woodstock 2 se repôs a realidade
E que os genocídios são anormalidades que recobrem o planeta
E que todos temos direitos e os outros só deveres
Porque a natureza humana é fazer escravos submissos
Conquistar poder, estatuto, cortar cabeças a eito
E ver a morte abstracta e só os outros morrerem
A natureza humana é a bruteza, não a consciência
E os deuses espreitam por vezes com ares de concupiscência


Imagem de: www.christonthecrapper.com.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Abril morreu doente





Escrevo numa folha manchada
Uma escrita tão contaminada
Que nos macula os sentidos
Nos dias cansados, perdidos
Das miragens repetidas
Das promessas incumpridas
E a escrita desfaz-se em nada
E não há rua nem estrada
Que nos conduza a bom porto
O sonho já nasceu torto
A liberdade omitida
A igualdade subvertida
A justiça escarnecida
E o povo de olhos vendados
E os dias amordaçados
E Abril morreu doente
E vírus rima com gente


Imagem de: www.unknown-days.com.

segunda-feira, janeiro 12, 2009

Relógio de sol





Respira-se um ar de Verão ausente
Nesta esplanada envidraçada pela luz
E sonha-se o amanhã pleno eternamente
Como se fôra o ontem que a memória reduz

Tudo é ilusão, só isso é certo
E em golpes de sol baixo esvai-se a dor
Que toca apenas árvores, aves, ruas, campo aberto
E se liquefaz no tempo inventor

Que é feito do futuro e do passado
Dos que passaram e dos que passarão?
Vivem todos num presente imaginado
Em leves limbos mornos de recordação


Imagem de: www.softpile.com.

domingo, janeiro 11, 2009

Pobre peregrino





O mundo cobre-se de gelo fino
E ai de quem sobre ele avança
Pobre viajante, pobre peregrino
Cumprindo promessas, cego de esperança

A intempérie pouco deixa vislumbrar
Feita de miragens, vida incoerente
E sabe que algures, sobre algum altar
O aguardam novas cruzes de sangue corrente

Partiu-se-lhe a bússola, perdeu o caminho
Estala o gelo cru, tem que se apressar
E onde quer que chegue está sempre sozinho
Num mundo sem metas, sempre a continuar

Pobre do migrante enredado em teias
Sem fé que lhe valha no surdo planeta
Longe das lareiras e das mesas cheias
À força um guerreiro, à força um asceta


Imagem de:www.jchristophergalleries.com.

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Neve e chuva





Batem seca, secamente
Flocos de neve diferente
Em coro com a chuva fria
E a mente fica vazia
Tremem o rico e o indigente
Mas um de prazer no quente
E o outro mora na rua
E come da vida crua
Os restos do contentor
Deixados pelo senhor
Quem não tem é preguiçoso
Ou tem um vício ominoso
E em poças perde-se a neve
E a vida, bizarra e breve
Batem dura, duramente
Serão pedras, será gente
É a gente, certamente
Mas gente tão indiferente
Que antes sequer de pousar
Morre a neve a sufocar


Imagem de:http://news.bbc.co.uk.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

O polvo





Escondido entre as rochas do fundo
Com os longos braços bamboleando
Ele sente-se o senhor do mundo
Agindo discreto, as intenções calando

Observa suspenso os peixes nadando
Felizes ou só vogando na vida
E, paciente, segue aguardando
O momento certo para a investida

De súbito surge e lança a fuligem
De frio negrume e discurso vão
E a vítima incauta, envolta em vertigem
Mergulha num poço, todo confusão

Quem resistirá ao seu esmagamento
À voracidade dessa natureza?
Que Judas se esconde a cada momento
Nos doces sorrisos que medem a presa?

Tanta predação nem o douto Vieira
Podia antever para Portugal
Quase todos peixes numa frigideira
Em que o dito bem sabe sempre mal



Imagem de: www.paullesch.com.

quarta-feira, janeiro 07, 2009

La Zizanie

Como José Sócrates, Hitler, Staline, Mao Tsé Tung e tantos outros, eram socialistas com a convicção de que tinham descoberto a poção mágica, ainda que em contextos históricos diferentes. I rest my case.



Há que metê-los a todos na linha
Fazer do universo uma China sem idade
Erguer mil barreiras à felicidade
À força criar uma moral mesquinha

Querem fugir, ninguém quer trabalhar
Do bairro da lata à mansão altiva
Dos campos extensos à cidade viva
Todos têm razões para desconfiar

Tudo o que passou foi rebaldaria
Apague-se o hábito e a tradição
Mude a ortografia, esmague-se a dicção
E instale-se a noite no lógico dia

Há que espalhar conflitos eternos
Canibalizá-los, torná-los pequenos
Fazê-los provar todos os venenos
Dos socialismos chamados modernos

E se os poderosos riem na calada
E as formiguinhas se acreditam gente
Há que calar a cigarra diferente
Que em palcos cinzentos se sabe enganada

terça-feira, janeiro 06, 2009

O funâmbulo





Quando o funâmbulo caminha concentrado
Na corda bamba, treze metros sobre o estrado
Nem se apercebe do corpo da assistência
Que olha sentada os mistérios da existência

E quando, enfim, se apercebe de repente
Quase que perde o equilíbrio incipiente
Mas os presentes, face ao profissionalismo
Não compreendem o vai-vem sobre o abismo

E eles sentados, e ele sempre a caminhar
E eles olhando, na verdade a dormitar
E quando ocorre, quando ocorre repetida
A queda estaca sempre, sempre junto à vida


Imagem de: www.home-of-rock.de.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

O que há-de vir...





Que alegria, arrebatar a lotaria
E desejar novos prémios improváveis!
O próprio Buda desanimaria
E enredar-se-ia em desejos intocáveis...

Porque é que uns têm Mercedes
E viagens e modernas moradias
E outros somente tântalas sedes
E miragens de gotas fugidias?

E dores de cabeça para quê
E pão amassado pelo mal
E ser-se o que não se é
Por deformação profissional?

E todos entoam o fado,
Eu também, sempre a dormir.
E o ano agora chegado
É sempre o que ainda há-de vir...


Imagem de: www.picsmaker.net.
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