quarta-feira, abril 30, 2008

Aguaceiros





Derramam-se aguaceiros como figuras dispersas
Na relva verde molhada que vibra das existências
Ao ritmo nervoso das gotas com o sol intercalado.
As memórias paralelas que alguém me conta ao acaso,
A loucura tão intensa dos comportamentos normais,
As fotos esborratadas dos que passam pelas ruas,
Cometas da impermanência, órbitas de tantas luas,
As notícias instantâneas de tragédias passageiras,
As gargalhadas furiosas que imitam essas tragédias,
O cheiro da liberdade e o fedor da opressão,
O peso das injustiças mascavadas de paixão...
Derramam-se na saudade do futuro e do passado
Chuvas de Espírito Santo no pensamento quebrado.


Imagem de: http://suziq.mm.com/photo/.

segunda-feira, abril 28, 2008

Astenia





Cheira-me a incenso e a enxofre
No fundo impenetrável das narinas
Onde os pêlos não varrem as ideias.
Tudo se choca em mim com baques secos,
Como num jogo de bilhar sem vencedores:
A actividade e a astenia em mútua sabotagem
E no fim tudo fica um pouco por fazer
Mesmo quando feito, sempre um passo atrás...
Quem dera tarefas que se completassem totalmente!
Quem dera textos simples, claros, objectivos!
Quem dera o sol rodando no céu fluidamente!


Imagem de: www.victorianweb.org (carvão de Sir Edward Coley Burne-Jones - 1874).

sexta-feira, abril 25, 2008

Sessão de esclarecimento

A propósito de uma dúvida que surgiu e que definitivamente corre o risco de surgir quando se fala da algo cerrada linguagem poética... A poesia é polissémica, subjectiva e forma artística. "O poeta é um fingidor...", como escreveu Pessoa, "...Finge tão perfeitamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente". A intenção primeira da arte poética não é copiar a realidade, mas sim trabalhar na linguagem as impressões e ideias do poeta transformado em sujeito poético. Se eu pretendesse confessar-me, poderia escrever um diário e mesmo assim!... Não é o caso. É preciso muito cuidado com a análise psicológica e biográfica do texto poético (e diria mais, de toda a expressão artística), ainda que os textos nasçam do poeta, das suas ideias, das suas impressões, das suas observações, das suas influências transformadas, das suas experiências pessoais e ainda vividas por interpostas pessoas.
Posto isto, claro que gostaria que um dia se lembrassem de analisar os meus poemas em doutas faculdades de Letras. Seria, no entanto, acima de tudo interessante ver até que ponto a polissemia permite a conclusão de disparates aparentemente lógicos à revelia da intenção criativa do poeta...

quinta-feira, abril 24, 2008

Umbigo





Esconde-se um luar pálido atrás do sol vermelho,
Uma verdade polissémica absoluta,
Uma confissão-violentação.
Preservas-te dos pensamentos e olhares,
Guardas-te dos prados verdes do mundo
Onde flores e frutos brotam naturais,
Temes a mediatização da existência
Por hordas carnívoras de joaninhas dissimuladas.
Não pintas telas, nem canções, nem versos...
Ensopas a vida de tinta invisível.


Imagem de: www.theindychanel.com.

quarta-feira, abril 23, 2008

Tic-tac





No tempo em que a minha ambição era crescer
Escrevi uns versos que diziam tic-tac.
O meu pai guardava-os num recanto da carteira,
Mostrava-os a amigos que exclamavam oh e muito bem,
Eram uma graça com os meus desenhos de dinossauros.
O tempo cresceu num tic-tac ensurdecedor
E arrumou todos os vivos nas gavetas da memória...
Que é feito das sinfonias que escutava com meu pai
Enquanto a minha mãe se atarefava na cozinha?
Foram todas para o céu exacto dos metrónomos
Em tic-tacs que enlouquecem quem já não as ouve.


Imagem de: http://forum.aceboard.net.

sexta-feira, abril 18, 2008

Fado





Nada tarda mais do que gemidos,
Vida de alucinação, fulgor,
Todo o universo é enganador,
Falsas as miragens dos sentidos.

Todos os tempos são tempos idos
Em enxurradas de ódio e de amor,
Em memórias de prazer e dor,
Em gestos informes, dissolvidos.

Vejo as ideias cristalizadas,
As palavras mortas, acabadas,
Todos os desejos esventrados...

Oh, ambições nossas, nossos fados!...
Tudo se termina em vácuos nadas,
Em covas fundas, frias, fechadas!


Imagem de: http://attambur.com (tela de Márcio Melo).

terça-feira, abril 15, 2008

Os iluminados e o acordo ortográfico

Um tal Carlos Reis, recém-elevado a reitor, mais uma figura sinistra do sistema e do regime, extremamente nervoso e acintoso como todos eles, esteve no Prós e Contras a defender acirradamente o Acordo Ortográfico, juntamente com a autora de livros que não leio Lídia Jorge. O encontro contou igualmente com detractores do Acordo, um desacordo na verdade, e ainda com representantes de outros países lusófonos, nomeadamente o Brasil e Angola.
Compreendo perfeitamente e aceito que os angolanos não sintam as implicações deste acordo que visa uniformizar o português numa língua rude e simplória, visto que a língua portuguesa se encontra, de facto, em mero desenvolvimento no seu país. Compreendo e aceito de igual modo que os brasileiros defendam o acordo, uma vez que este lhes permite posicionarem-se num patamar superior e, de certo modo, vingarem-se do tal colonialismo que lhes ensinam no ensino primário. Mas não compreendo nem aceito que portugueses de Portugal se dispam de todo o brio para perseguirem a miragem de uma internacionalização forçada atrelada ao Brasil. Porque será que o Reino Unido nunca se sentiu na obrigação de assinar acordos deste calibre com a superpotência estadunidense? Brio, meus caros. Coisa que uma certa casta de portugueses actualmente no poder desconhece por inteiro.
Temos, então, seis anos até que este acordo entre plenamente em vigor e até que eu, que nunca na minha vida dei um erro ou quase, comece a praticar atentados bombistas na ortografia por não ter a certeza de como se escreve esta ou aquela palavra... Afirmam ("eles", que eu adoro este termo jocosamente paranóide: "eles", embora no caso presente tenha bem a noção de quem "eles" são) que a simplificação da grafia vai facilitar a aprendizagem e conduzir a uma escrita mais perfeita para todos. Discordo. E temo por quantos já escrevem com muitíssimos erros e passarão a escrever ainda com mais. Temo também pelas novas gerações que actualmente aprendem a escrever com determinada grafia e subitamente, durante o seu percurso escolar, terão que a modificar por inteiro. Será uma geração condenada pelas politiquices destes indivíduos.
Mas estes indivíduos - e "eles", estes indíviduos, têm nome e esse nome é PS, o PS de José Sócrates e todos os seus acólitos - caracterizam-se precisamente por um comportamento maníaco e obsessivo que os leva a modificar tudo o que seja imaginável. Pode até ser que as coisas estejam bem... Pode até ser que as coisas não estejam exactamente bem mas possam ficar pior se forem mexidas... Não importa. Há que mexer em tudo, modificar tudo, mover tudo cento e oitenta graus. Este desgoverno actual, como o desacordo, ficará conhecido pela sua vasta obra de calamidade e destruição arrogantes. Este desacordo é mais uma facada nas costas da democracia, visto que ninguém consulta ninguém quando se trata de questões da maior importância: os iluminados aplicam e já está.
E mais não digo, uma vez que muitos outros, se calhar também em Angola e no Brasil, saberão discorrer sobre o assunto com maior propriedade. Quero apenas deixar bem claro, já que falamos em propriedade e que a propriedade do que escrevo é minha, o seguinte: se algum dia alguém se lembrar de me publicar, o que é uma hipótese, ainda que remota, ou quem sabe, livre-se de modificar a grafia antes de eu mesmo ter sido forçado a modificá-la. Que é como quem diz, tudo o que escrevi até agora e o que vier a escrever durante os próximos anos é para manter no original. Quem desafiar este pedido poderá contar com a minha maldição eterna.

segunda-feira, abril 14, 2008

Vaga





As flores brotam dos ventres lisos
Que vibram ao sol azul fiapado
Sob o céu que soluça e explode
Ao peso de galáxias mentais revoluções!
Sei de mundos que se agitam sob cabelos
Como tentáculos ondulantes das profundezas
Onde não alcança o meu escafandro embaciado
E eu não passo de um explorador triste e esgotado.
Sei de raios de luz finos, dispersos,
Que iluminam os meus dias de néon magoado
E se vão perdendo lentamente na distância...
Que projectos podem ter tanta importância?


Imagem de: http://passionline.free.fr.

sexta-feira, abril 11, 2008

The needle and the damage done (poema seco)



A vida passada num flash,
A agulha na pele insensata,
Guardas dum lado e tu do mesmo,
As fardas na cinzentidão do mundo.
Lembras-te dos anos setenta
Onde eu passei a pairar
Na mesma barricada mas noutro fosso
E nunca te conheci.
O Berto, o Pleibas, os putos punks e mais,
O sol a pino intenso sobre os jardins do Marquês...
Tudo tão seco, como o tempo secou tudo!
Tudo tão morto e só a memória difusa...


Imagem de: http://www.tshc.fsu.edu/.

terça-feira, abril 08, 2008

É difícil por vezes...





É difícil, por vezes, difícil
Uma letra não se confundir com um algarismo,
Uma rocha não se assemelhar a uma pluma,
Um raio não se confundir com um trovão...
Pois não são todos filhos de Deus e do diabo
Flutuando nas nascentes ferventes do pensamento?
Oráculo, narra-me contos de outros mundos,
Odisseias da minha existência pequenina!
Cala-se o oráculo, silencioso,
A pitonisa confundida pela intuição...
Outrora, acreditei nos mistérios deste mundo,
Na voz da luz refractada nas águas correntes...
Hoje sei que tudo é abstracto nas palavras,
Continuamente insensato em raciocínios morrentes.


Imagem de: http://persweb.wabash.edu.

sexta-feira, abril 04, 2008

Os adultos foram todos morar na lua





Crianças de seis anos andam com armas,
Escondem-nas ciosamente na cabeça dos adultos.
Ah, que saudade mortal dos velhos tempos,
Dos cowboys, dos índios, do sempre novo Oeste,
Dos romanos e dos lusitanos com espadas de pau,
De tantos sonhos, violentos até em tanta paz!
Que nostalgia imensa do velho Portugal solarengo,
Dos meus pais e dos familiares todos, despreocupados
Em redor de uma lareira e alguém dormita calmamente,
Sonhos de certezas e perfeitas imutabilidades,
O rio fluindo sereno e as árvores de fruto derreadas
Sob o peso dos séculos e das revoluções primaveris!
Nesse tempo, o estrangeiro ficava em galáxias remotas,
A América das sanduiches e dos ataques cardíacos,
A Europa das tradições e das novidades,
O mundo inteiro, mítico e distante...
Uma criança de seis anos dispara pétalas de flor
E abre-me uma cratera lunar no coração.


Imagem de www.thebppa.com/James-Emmett/photo/2.
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