quinta-feira, março 29, 2007

Ode global




Rasguem-me as calças às tiras,
Puxem-mas até aos joelhos,
Varem-me a língua e o umbigo,
Ponham-me um boné de lado,
Ritmicamente amordaçado!
Iou!, grito de dor e de pasmo.
Iou!, gritam em coro em São Bento.
Iou!, em Bruxelas e em Estrasburgo.
Tá-se bem no tá-se mal,
Tá-se nos dias que arrastam
Com ar de passarem depressa.
Escutem-me bem, ditadores,
Filhos dos golpes Fontistas,
Filhos dos Condes d'Abranhos,
Filhos da choldra sem tempo!
Escutem a língua das cifras,
A língua seca das taxas,
Da inflação, da deflação,
A língua mordida de vespas,
A linguagem jivaresca!
Com os anos chegam as rugas,
Com as rugas, a impotência,
A impotência na vida,
O não se ter feito nem sido,
O nunca se vir a existir,
Chega a auto-complacência
Mascarada de exigência...
E o gosto da normalidade...
E o vómito do dia-a-dia!
Iou!, gritam nos ministérios,
Urra-me a inconsciência!
Iou!, morremos de eloquência.
Dêem-me um balde de tinta,
Quero sujar as paredes,
Quero sugar os ecrãs,
Quero encharcar os olhares,
Quero todos nos radares!
Escutem-me bem, quem me escute,
Não tenho nada a calar
Nem tenho nada a falar,
O meu grito é abstracto,
É um borrão primordial!
Iou!, vivamos de olhos tapados,
Logicamente infelizes!...


Imagem de http://italy.indymedia.org.

sexta-feira, março 23, 2007

Eles




"Não há mercado!"
"Não há trabalho!"
"Eles é que mandam!"
E não há poesia
Porque matam a poesia
E ninguém lhe chora a sorte.
E não há vivalma
Pelo genocídio absoluto
Que não passam na TV.
Não há nada mais no mundo,
Só fábricas algures na China,
Bancos e multinacionais.
E a cada verdade gelada
Do anónimo da mesa ao lado
Morre ele mesmo e todos nós,
Morre a beleza no mundo,
Morre a esperança, a humana esperança,
Nesta terra de robots.


Imagem de www.guttertype.com.

quinta-feira, março 22, 2007




Dá-me...
Dá...
Dada.
O dado rola,
Tomba esquinado,
Cai enquinado,
Atropelado
Por uma bola!
O tempo impassa...
Serei carcaça
Mas não cresci.
Flutua a lua
Tão amarela!
A lua nua,
A lua crua,
Pela janela.
Dá.
Não dês.
Joga outra vez...


Imagem de www.sdreams.com.

Prometeu agrilhoado




Prometeu agrilhoado
À vida, às obrigações,
Aos sonhos por materializar.
Prometeu agrilhoado
Assiste da última fila
Ao mundo que gira em redor.
Prometeu agrilhoado,
Pelos ventos acossado,
Pelos tempos esmagado.
Prometeu olha a TV,
Olha as capas das revistas,
Os carros grandes que passam,
Os viajantes que partem,
Os bafejados da sorte,
Os filhos do livre arbítrio.
E tudo lhe ecoa na mente:
Prometeu, eu, eu, eu...


Imagem de www.michaelmhensley.com.

quarta-feira, março 21, 2007

Do olhar




Quem mais dorme assim, de olhos abertos,
Como eu, de olhos abertos a dormir,
Abertos, escancarados, ou túmulos selados
De pedra íntima, gélida, calada e secreta
Onde ninguém saberia penetrar impune,
Salvo eu mesmo - e nem eu mesmo - às negras badaladas,
Eu, sorvendo sequioso a minha hemoglobina,
Esse rio rubro que corrói a alma
Em metamorfoses tristes e empastadas,
Linhas tão correctas de um DNA indecifrável?
Sou a assombração privada do meu ser
E só assusto de morte e fatalidade
Os morcegos silenciosos que vivem pendurados
No olhar que guardo atrás do olhar
Do olhar do olhar do olhar do olhar...


Imagem de www.outdoorinasia.com.

terça-feira, março 20, 2007

Desejo de ser fotão




As telas amadoras nas paredes,
As fotos em molduras que as contêm,
Cada ser entregue à sua vida,
Cada ser conversando para o seu lado,
As cores variadas como se homogéneas,
As mesas com tampos de vidro reflectindo o tecto,
As cadeiras almofadadas em tons incompreensíveis,
A vidraça, grande, de onde se vislumbra,
Se vislumbra o quê? Mais coisas e outras coisas,
Cada uma com a sua personalidade tão igual,
Cimentos, colunas, vidraças e gente passando,
Cada um passando para o seu lado...
Sentimentos flutuam como sons
E risos e choros e pensamentos tão voláteis!
Nada é real, nem sequer o próprio rei.
E quem me dera ser um minúsculo fotão
Que só o fosse, talvez, ao toque do interruptor...


Imagem de www.pixiport.com (foto de Bogdan Zwir).

sábado, março 17, 2007

O enforcado




Cego como a justiça dolorosa
O enforcado estende o olhar curto ao infinito,
A miopia ao longo da planície seca e pedregosa...
O enforcado esforça o olhar mas não tem fito.
Que mão pesada secou os fontanários do passado?
Quem impôs este sol amarelo e doentio?
Quem fez dos pomares todo um planeta estagnado?
Quem ousou calar o gorgulhar do rio?
Ao longe, um castelo de cartas periclita
Prestes a lançar-se ao vento em caos total...
E o enforcado, que olha mas não fita,
É a carta mais fácil de tombar no pantanal.


Imagem de www.bewtchingways.com.

terça-feira, março 13, 2007

Se somos todos iguais




Se somos todos iguais
Como achas convictamente
É igual quem arrisca mais
E quem tudo exige indolente

É igual a luz do sol
Ao inverno e à escuridão
E a coruja e o rouxinol
Cantam a mesma canção

Quem sabe porque aprendeu
É igual ao principiante
E o rato, que rato nasceu
É igual a um elefante

E enquanto nos degladiamos
Governam-nos sem piedade
Os gordos corruptos, tiranos
Que impingem a igualdade


Imagem de www.wishihadthat.com (tela de Louis Icart).

segunda-feira, março 12, 2007

Desejo do limbo




De nada adianta o desejo do limbo
E o paraíso é uma abstracção...
Tudo se paga, tudo se trabalha
E já vi ouro transformar-se em palha.
O sonho é o sonho -
Extravasa a tela mas é só borrão
E já vi o sim transformar-se em não.
Tudo se paga, tudo se trabalha
E já vi o limbo fazer-se fornalha.


Imagem de www.shazzie.com.

quinta-feira, março 08, 2007

Aniversários




Todos os dias
Deixo perfeitamente incelebrados
Quer o teu nascimento, quer a tua morte.
Todos os dias existes
Em universos que do meu se separam
Sem grandes chamas,explosões,
E mesmo Deus só vislumbra o que é normal.
Todos os dias, tão normais,
São dias de desaniversários
À mesa longa do chapeleiro louco
E eu rio como um gato intensamente psicadélico...
De tristeza, de alegria e até por tique -
A quem interessa porque me rio?
Festejo apenas a nossa imensidade e a nossa pequenez
Sepultadas, por destino, em pensamentos vagos...


Imagem de http://floatingworldweb.com (desenho de Sir John Tenniel, 1864).

sábado, março 03, 2007

Lá fora e cá dentro




Faltei repetidamente às minhas obrigações
E, faltando, pequei por deslocalização,
Sufocado entre páginas pesadas de livros sagrados
E olhares de quem me censura sem me censurar.
Lá fora, mantém-se estático e cinzento o céu,
As árvores naturistas, despidas de culpabilidade.
Os outros, sempre os outros, formigam persistentemente
E sabem que falhei, mesmo não me olhando.
Lá fora, gira o planeta num ritmo sempre igual,
Sucedem-se as estações e as vidas, sempre iguais...
Lá fora é tudo o que não é cá dentro.
Sou um tigre enjaulado e impaciente
A quem se esqueceram de trazer a refeição.


Imagem de www.lib.uwo.ca.
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