sábado, dezembro 31, 2005

Desejos de Ano Novo

Para todos, desejos de um excelente 2006!



Que a poesia sempre encontre novos caminhos, que as editoras comecem a prestar atenção aos blogs (e não digo às jogadas comerciais, tipo O meu Pipi, porque, para mim, Pipi só a das meias altas, francamente muito mais simpática), que não se percam no caminho para o Poesia para quem quiser e que o amor vos encontre em todas as suas formas mais surpreendentes. Abraços.



Joaquim Camarinha (fugindo um pouco aos seus ataques de spleen e mal de vivre, que tão bem ficam aos sujeitos poéticos)

Imagem de www.redbill.us.

sexta-feira, dezembro 30, 2005

Corda bamba

Com os olhos bem fixos na corda bamba,
Rápida e fugaz como uma mamba,
O chão colado à recta multiplicada,
A queda, a expulsão, esperança esmagada...

A vida triturada, o cosmos a gargalhar,
Preso à corda no chão, numa cama crepuscular,
Num samba desconexo, o corpo feito muamba,
Com os olhos bem fixos na corda bamba.

O arrepio na barriga exageradamente lisa,
A tímida passada, absolutamente imprecisa,
Os planos, tudo é plano, vermelhão,

Escuto a voz que se aproxima, uma canção
Despida de sentido e sentimento, toda a nu,
Melodiosa morte, sorridente, a vida a cru.



Imagem de www.ecossefineart.com (tela de Alexander Millar).

Poema de Joaquim Camarinha

segunda-feira, dezembro 26, 2005

Olho


Vejo tudo amalgamado...
Desconfiança, entrega,
Sorrisos abertos, fechados,
Dentes, doentes,
Atletas e pseudo-atletas
Cruzando arrumadores, escapes,
Loucura ocultada, segredos,
Corações largos, também parcos,
Miminhos, insultos, vazios,
Máquinas de multibanco,
Crises, festas de luxo,
Música, ruído, palavras, silêncio,
Todo eu forjado em palavras
Dissecando e isolando
E tudo fica tão algo
Tão momento e já passou.
Namorados trocam risos patetas na mesa do fundo
E os vizinhos odeiam-se pateticamente
Por hábito, descuido ou paixão.
O homem, escola, animal racional...
Sugam-se as almas
E bebe-se o sangue.
Calem-se todos já, por favor...
Não aguento sequer mais ouvir
As gargalhadas dos deuses porque lhes dais o poder.



Imagem de http://radio.weblogs.com.

Poema de Joaquim Camarinha

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Feliz Natal, Feliz Natal, Feliz Natal, Feliz Natal...

Feliz Natal! Feliz Natal! Feliz Natal! Feliz Natal!
(E, em Belém, os sinos a repicar)
Feliz Natal e o Natal é quando um homem quiser.
Passa daí um whisky e uma cigarrilha,
Sim, daquelas só com folha de tabaco,
Nunca se sabe até quando poderemos fumar...
Sinto-me deprimido com tanta felicidade
E sentir-me-ia deprimido sem tanta felicidade
E, na verdade, talvez não me sinta de todo deprimido
Mas esteja, sim, a representar o papel concorrente ao Óscar...
Ah, Shakespeare, a vida como um palco e a teatrada toda!
Feliz Natal e passa daí mais uma cigarrilha.



O Eu, esse chato persistente, obrigou-me a chamar-vos a atenção para o facto de que não se devem sentir deprimidos com o meu poema. Segundo ele, um poema é um poema e eu não poderia dizê-lo melhor. Também segundo ele, deve haver por aí gente que não consideraria isto poesia. Tadinhos, espero que, pelo menos, me enviem um relatório com 150 páginas e muitas notas de rodapé (tipo mestrado), contendo uma teorização aceitável do que seja essa tal poesia. Bom, vá, Feliz Natal para o caso de não nos lermos antes...



Imagem de www.moderndrunkardmagazine.com.

Poema de Joaquim Camarinha

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Às voltas e em círculos como as formigas

Trago a linha de visão à roda
De tanto voltear dentro da cabeça
Sem meta nem linha de partida.
Estou, sinceramente, cheio de insultar desconhecidos
(na cabeça, onde não provoco brutamontes)
Pela simples razão de os ver às voltas
E me parecerem parados por também andar às voltas.
Ou então, pode ser que tudo tenha a ver muito simplesmente
Com uma história de cientistas às voltas com a física,
De cordas mais pequenas do que pequenos quarks,
De onze dimensões nos universos conhecidos
E de formigas que enquanto avançam
Talvez não avancem, ou sim, mas pareçam estar paradas
Por andarem às voltas e às voltas e às voltas...
Lembra-me o Vertigo do Hitchcock -
Esse é que era o deus das películas antigas,
Às voltas no projector e nas cabeças às escuras...



Imagem de www.harperlacey.com.

Poema de Joaquim Camarinha

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Oração

Nossa Senhora das lágrimas de sangue!
Senhora Nossa do fim do mundo!
Rezem-se terços, milhares de orações,
Encham-se as missas de coros incapazes,
Porque tudo vale para salvar o mundo!
Nossa Senhora da santa peçonha,
Nossa Senhora dos luxos romanos,
Nossa Senhora dos mentirosos,
Dos escravos maldizentes, maus senhores de si mesmos,
Nossa Senhora das lágrimas de sangue,
Salvai-os a todos do fim dos tempos!
Nossa Senhora do fim da existência,
Que não salva alma alguma da escuridão humana...



Imagem de www.csicop.org.

Poema de Joaquim Camarinha

Lua lunática e enfática

Que mundo tão belo, tão povoado de selenitas
Sempre aguardando a chegada de novos cosmonautas!
Uns especializam-se em rasgar fatos espaciais.
Uns aguardam para lhes ajeitar os colarinhos.
Uns surpreendem-se com o não-solipsismo do cosmos.
Uns indecidem-se eternamente:
Arrancar e coser ou coser e arrancar?
Quem diria que a lua, essa coisa bela dos amantes,
Estivesse assim tão plena de cérebros em autogestão?
E Deus, o Deus lunar, porque também lunar,
Deus, o multifacetado, o incompreensível, vivendo Ele na lua,
Mais vale plantar o solo de todas as bandeiras possíveis e impossíveis
E escrever em verso, prosa e texto dramático
O que os cientistas exprimem em fórmulas matemáticas...
A terra cheia de selenitas,
A lua cheia de Deus...
Batam-me palmas quando eu aterrar!
Batam-me palmas e cantem-me hinos!
Dispenso todos os julgamentos negativos...
Ilusão por ilusão, prefiro um sonho à minha medida.



Imagem de www.solarviews.com.

Poema de Joaquim Camarinha

Álvaro de Campos revisited

Como Álvaro de Campos
Carregava o heterónimo Pessoa,
Carrego eu também outra pessoa...
Eu é que sou! Eu e mais ninguém.
Porque, como Campos, choro lágrimas verdadeiras
E rebolo-me em auto-piedade
Das pequenas desgraças, míseras e ridículas
De alguém que os outros vêem e eu sinto apenas.
Sacrossanta auto-piedade dos autores hipersensíveis!
(Já o pai do outro o afirmava)
Quero ser eu e nunca o outro!
Nunca o que procura a aprovação alheia
E escreve com forma, rima e ritmo!
Deixo o suicídio, fraco e patético,
Para os que levam vidas anónimas
E são, no entanto, demasiadamente importantes para blogar...
Na verdade,
Deixo o suicídio para ninguém,
Porque eu é que sou,
Eu e mais ninguém,
Eu mais as minhas lágrimas alheias.



Imagem de www.sierrabravo.co.uk.

Poema de Joaquim Camarinha

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Dois poemas de amor

Fazem juras contra os muros,
Gravam corações em troncos,
Cantam como os passarinhos
E bebem raios de sol.
Ah, infância tormentosa,
Aves do paraíso,
Amando-se e odiando
Na árvore do esquecimento!
Certezas, eternidades,
Em muros, em troncos de árvores,
Em folhas, queimadas, rasgadas,
Em fotos, algures em gavetas...
E as letras decrescentes
Sob a lua curiosa
Como um eco de montanha:
Amor!
Mor!
Or!
Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

Há um só espaço à sombra dos planetas,
Magno e misterioso no que esconde, revela e promete,
Onde o sol reverbera em todos os sentidos,
Onde a chuva é morna, calmante e regeneradora,
Onde a terra é firme e cada torrão um lar,
Onde o vento me assobia o som primal aos ouvidos.
Um só local e todos os locais...
Um templo abarcante de onírico e real
Onde ambos são exactamente uma unidade,
Coisa, coisas, reflexo do divino,
Prisma óptico agudo de simplicidade,
Cristalinidade do amor...



Primeira imagem de www.drunkpenguin.com.

Poema de Joaquim Camarinha

domingo, dezembro 11, 2005

Poemeto esfíngico

Não há quem me diga
Nada que alguém não saiba já,
Nem há quem me invente
Alguma linguagem feita de sons invisíveis,
Nem há quem me mostre
Pedras firmes de alguma dimensão além...
E nem sequer pode haver outra dimensão
Porque tudo é plano para além do infinito
E é plano o próprio horizonte e Dédalo nele
Como são planas todas as verdades
E os planos que nunca faraó algum cumpriu.
Comer-vos-ia vorazmente, mas eis-me rodeado de infinita areia
E de vento que vai tornando plana cada duna e duna e duna...
Eu mesmo sou o deserto,
Deserto no centro de mim mesmo.



Imagem de www.guardians.net.

Poema de Joaquim Camarinha

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Passei a tarde a eliminar

Passei a santa tarde a eliminar nazis virtuais
E a espantar-me com o arsenal de armamento poderoso
Que consigo transportar no pequeno rato do computador.
Passei a tarde a eliminá-los.
E acho que seria até bem sucedido no que outros falharam vergonhosamente:
Mandar Hitler, Himmler, Goering, o bando todo, pelos ares
E ser o salvador da civilização!
Talvez não aguentasse o peso das medalhas como aguento o peso das bazookas...
Mas porque diabo é que não estava na Alemanha durante a Segunda Guerra?
Deus é injusto na forma de nos colocar.
Ou talvez lá tenha estado, talvez tenha falhado vergonhosamente...
Passei a tarde a eliminar nazis virtuais
Como quem elimina restos de spam do computador.
No Norte de África, em França e em todo o lado
E sinto que o meu corpo é composto de bytes, megabytes e gigabytes.
É bom ser mega e giga assim... Vírus da gripe, estão a ouvir? Fujam antes que vos elimine com tiros e explosões!




Imagem de www.game-club.com (do jogo Medal of Honor Allied Assault).

Poema de Joaquim Camarinha

Para quê tanto sofrimento, pergunta o Gedeão...


Estaria o dia agora a nascer se fosse Verão
E eu sou a última sombra, na penumbra atrás do balcão.
Fizeram uma festa e partiram todos...
São um pouco como os espíritos inquietos do Shining,
Sempre por cá mesmo quando ausentes
E abandonam à passagem um rasto peganhento
De copos vazios, cinzeiros cheios e fumo ectoplásmico
Que me entra pelas narinas e vai directamente ao cérebro.
Espera... Deixa-me acender um cigarro também
Para ascender às profundezas enquanto arrumo os restos da sessão...
Parti um copo!
Não faz mal. Tudo se parte e não vale a pena colar cacos porque há sempre novos copos.
Algo se move a um canto... Ratos? Não. Apenas uma ilusão e a vida é feita de ilusões...
Dei um mau jeito nas costas ao debruçar-me para apanhar um maço amarrotado do chão.
Que dor! Injustiça! Sofrimento!
Pergunta-se um certo poeta para quê tanto sofrimento...
Para quê? Ora, para quê! O poeta não entende nada da vida!
A única realidade máxima é que tem que haver quem arrume o que se vai desarrumar e arrumar e desarrumar e arrumar...
E talvez tomar um analgésico para minorar o sofrimento atroz das costas.



Imagem de www.nyu.edu (tela de John Sloan).

Poema de Joaquim Camarinha

sábado, dezembro 03, 2005

Da responsabilidade

Na natureza, nada precisa de somas e multiplicações.
O que é natural não se auto-disciplina
E um tsunami pode ser uma gargalhada do mundo.
As aves voam porque têm asas.
Os peixes nadam por terem barbatanas.
As nuvens movem-se pela força do vento.
E os filhos surgem como fotões intermitentes.
A natureza é simples, tão simples que parece complexa,
Tão complexa que só pode ser ficcional.
Porque se move o universo?
Por garra? Por responsabilidade?
Um milhão de homens responsáveis irá hoje mesmo a enterrar...
Nada se conquista que de algum modo permaneça.
No céu, estrelas brilham com diferentes magnitudes,
No céu, enfeitado por tranças de cometas,
Cinturas de asteróides e meteoros humildes,
Planetas vazios e gigantes.
O tempo não existe se ninguém o contabilizar
E tudo é mera normalidade natural.



Imagem de www.latinamericanstudies.org.

Poema de Joaquim Camarinha

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Respirações


Sonhei que respirava...
O ar vagamente sólido, árctico e desértico
Colava-se-me aos pulmões como um vírus,
Como as palavras se colam ao papel
E o papel se cola ao monitor,
Numa permanência aparente e fugaz.
Os átomos competiam movimentos
Nos olhos, nas narinas, ao longo da língua,
Nas mãos plenas de sensações neuronais,
Os átomos a moverem-se como fogos de artifício
E eu procurando o artífice e o fogo,
A chama colorida sempre um passo além de mim.
A respiração...
Dentro, fora, dentro, fora, o ritmo, o sexo,
O sonho tão agastantemente real
E o pavor do despertar...
Um deus sem nome acordou
E começou a sonhar respirar...



Imagem de www.listenforjoy.com.

Poema de Joaquim Camarinha

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