sábado, novembro 26, 2005

As Compras de Natal


Andam todos ufanados com o Natal
E, daqui a um mês, com o Ano Novo, o Carnaval, a Páscoa e o Verão.
Embrulhos, pacotes, prendas, presentes, tudo às cores,
Todos apressados, atarantados e sorridentes...
O Natal é o Europeu de Futebol de cada ano!
As famílias reunir-se-ão à volta de mesas fartas
E está muito bem, porque eu mesmo sou burguês
(felizmente, ou só saberia escrever quadras populares)
Mas é a minha cabeça que está, toda ela, farta
E cronicamente a precisar de copos grandes de sais de frutas.
Tanta cor, tanta música, que bebedeira,
Os amigos de hoje abraçarão os inimigos de amanhã
E trocar-se-ão prendas e promessas, porque tudo é troca.
Em Dezembro também eu farei o meu Natal.
Trocarei prendas, telefonemas, emails e SMS!
Beberei vinho e soltarei gargalhadas, também eu.
No dia vinte e seis, juntarei os restos da papelada colorida
E lançá-los-ei, amarrotados, no contentor do lixo,
Porque a vida continua e há que manter a cidade limpa.



Imagem de http://distelrath.tripod.com.

Poema de Joaquim Camarinha

terça-feira, novembro 22, 2005

Condói-te de mim


Espera...
Condói-te de mim só um momento breve,
Tem piedade da minha condição gripal...
Poisa a mão calmante na minha alma dolorida
E entoa baixinho uma canção de embalar...
Dói-me a cabeça de uma forma vaga
E, se ela me dói, dói-me a vida e o pensamento.
Pesa-me o olhar a arder de imagens
E, se ele me pesa, peso eu, tu e tudo o mais.
Condói-te de mim, que hoje sou menino,
Um menino pobre, sem jogos para jogar,
Que aguarda em silêncio o sono a chegar...



Imagem de www.jitterbug.com (tela de Edvard Munch).

Poema de Joaquim Camarinha

segunda-feira, novembro 21, 2005

Buda urbano ocasional


Tantos olhares cruzados e vidas paralelas,
Tantos caminhos laterais, nunca o do meio,
E os olhares ali, sempre fugazes,
Ao lado das vidas sempre em linha recta...
"Olá!", diz alguém, do outro lado.
"Olá!", diz alguém. Mas não responde.
No centro do silêncio absurdo todos sufocam
E já ninguém fala nem ninguém replica,
Vejo-os a viver para projectos anulados
Porque a vida existe sempre em outra dimensão.
E buscam, sonâmbulos, os olhos cerrados,
Os risos precavidos, risos duvidosos,
Buscam o seu santo Graal, símbolos, ideias,
Mas o Graal é uma história velha de cavalaria
E santo é uma palavra surda, um som e nada mais...
Sou mais feliz porque cancelei todos os projectos.
Dei-lhes asas, ensinei-lhes a liberdade...
Voam à toa pelo cosmos e pelo contra-cosmos
E voltam, às vezes, para me dizer "olá!".



Imagem de www.ponyboyrecords.com.

Poema de Joaquim Camarinha

sábado, novembro 19, 2005

Animália

Todos os dias se amontoam inocentes nas valas comuns.
Todos os dias alguma pedra sólida se liquefaz.
Morrem os sonhos e as certezas
E os rebanhos balem felizes a caminho dos matadouros.
Novos senhores substituem os antigos
E, alarves, gargalham à mesa larga dos despojos.
Dizem-nos que os sacrifícios são inevitáveis...
Mentem-nos há trinta e um anos, setenta e nove, noventa e seis e antes, tão antes,
Mentem-nos incessantemente e arrancam-nos a pele
Porque a natureza do lobo é inescapável
E os rebanhos seguem-no felizes a caminho dos matadouros.
Um dia, as matilhas do presente finar-se-ão patéticas,
De patas estendidas para o céu indiferente...
Nesse dia, os rebanhos festejarão com danças, fogos de artifício e exclamações,
Sem que, de todo, possam escapar à natureza do rebanho.
Nesse dia, planarei largamente em círculos pelo céu vazio
E, planando, soltarei o meu grito de júbilo e desgraça.



Imagem de www.bergoiata.org.

Poema de Joaquim Camarinha

sexta-feira, novembro 18, 2005

Pobre Prometeu

Os céus só pesam mais do que chumbo
Entre buracos negros opressores
Por mandato dos poderosos
Dos loucos e calculistas sem senso.
Um dia, haja tempo ou ilusão,
Ou então, em eterna permanência,
O trono é pó, os raios poeira,
Lendas que se ensinam às crianças,
Bons e maus, para assustar e ensinar.
Pobre Prometeu, agrilhoado, amaldiçoado,
Pela fúria insana dos empedernidos!
Ah, que escolha, viver em tortura eterna
Ou escravo dos senhores de olhar temível!
Pobre Prometeu, para sempre atormentado
Pela dúvida, mais que pelo altruísmo!...



Imagem de http://eu.art.com (tela de Jean-Louis César Lair).

Poema de Joaquim Camarinha

segunda-feira, novembro 14, 2005

Rabanadas

Comer uma rabanada sumarenta
Com as luzes do Natal já a piscar
Pode ser um deleite de exotismo
Melhor do que um exame oral de sexo...
E todos sabemos como é bom dar à língua
Excepto os tristes e os surdo-mudos,
Mas há quem use as mãos como pincéis.
Comer uma rabanada suculenta
E senti-la desfazer-se no palato,
Senti-la desfazer-nos o palato,
Pode ser até insultuoso
Para quem viva para a tensão dos exames.
Mas a adrenalina e todas as hormonas
Nunca foram matéria para Jesus...
A verdade é que aprecio e adoro
Os prazeres simples e variados
E que uma boa rabanada, perto do Natal
É como saborear a vida de um só trago.



Imagem de http://anomalias.weblog.com.pt.

Poema de Joaquim Camarinha

sábado, novembro 12, 2005

Quem é Joaquim Camarinha? (2) - Religião


O Eu realizou uma pequena entrevista temática com Joaquim Camarinha. Nesta, optou pela clássica pergunta-resposta, sem subdivisões, para quem quiser ler...



Eu - Noto na tua poesia uma certa animosidade contra a religião. Não acreditas em religião?
Joaquim Camarinha - Não acredito em organizações porque acho que em geral se perde o essencial para se ganhar o acessório.
Eu - Como assim?
JC - Precisamente isso. Vi coisas. E tenho dificuldade em acreditar.
Eu - Parece-te construtivo?
JC - A construção é algo de pessoal.
Eu - A construção de uma espiritualidade?
JC - E a sua expressão. Há tanta ou mais espiritualidade na construção de um objecto de arte ou em qualquer outra construção do que em mil rituais cujo significado se perdeu há muito e que alguma vez terão correspondido a necessidades sociais que já não existem.
Eu - Se pudesses, punhas um ponto final em todas as religiões?
JC - Não punha ponto final em nada. Não me diz respeito. Gosto de construir e deixo a destruição para quem a preferir.
Eu - Mas se encaras algum tipo de espiritualidade e criticas as religiões organizadas, como é que podes não assumir uma postura mais iconoclástica?
JC - O que eu assumo está na minha poesia. Enquanto não me forçam agressivamente não tenho que me defender agressivamente.
Eu - Mas acreditas ou não num Deus?
JC - A questão é se um Deus acredita em mim.
Eu - Pareces-me um pouco zangado...
JC - Pareço-te agressivo?
Eu - Eventualmente.
JC - Mas não sou. Muita gente parece ter um sério problema com a honestidade...
Eu - Não te achas agressivo em alguns dos teus poemas?
JC - A arte tem que ter uma certa força, sob pena de não transmitir emoções. E os poemas são construções formais do que se convencionou chamar arte.
Eu - Significa isso que não correspondem à realidade?
JC - Significa que correspondem a uma parte da realidade. E que o facto mais real da realidade é que se encontra em permanente mudança.
Eu - Não acreditas na permanência...
JC - Acredito numa permanência em que nada se repete jamais.
Eu - Ou seja, não acreditas na permanência do amor, da civilização, da cultura?
JC - Acredito que os caminhos são muitos, que o movimento é permanente e que nada é previsível.
Eu - Sentes-te feliz assim?
JC - A busca humana talvez não seja em direcção à felicidade, por ela ser subjectiva e fugaz por natureza, e sim em direcção ao conhecimento, a única coisa que, embora eventualmente dolorosa, nos pode aproximar da divindade.
Eu - Então acreditas em Deus...
JC - Acredito que talvez estejamos aqui a conversar. Em que é que acreditas?
Eu - Acredito que sou o entrevistador.
JC - Os papéis alteram-se facilmente.
Eu - Gostas de palavras...
JC - Desgosta-me a poesia que tem por base meramente a palavra e a sua exploração. Não me apetece ser muito metalinguístico. Gosto mais de imagens e procuro escrever de forma imagética. Aliás, escrevo naturalmente dessa forma.
Eu - E parece-te que isso agrada a todos?
JC - Nada nem ninguém agrada a todos. Em última instância, não se agrada a ninguém porque cada um sabe apenas interpretar-se a si mesmo, ainda que por intermédio de outros.
Eu - Existe, então, uma incomunicabilidade permanente?
JC - Tão permanente quanto possa ser e inerente às próprias limitações da linguagem.
Eu - Mas o mundo tem funcionado...
JC - Possivelmente mais por inércia. O universo está estruturado de forma a funcionar.
Eu - Então, alguém ou algo o estruturou...
JC - A conclusão parece-me apressada e mais movida pelo desejo de acreditar do que por qualquer tipo de lógica intocável.
Eu - Deus, a existir, é responsável por tudo o que acontece?
JC - Se Deus, a existir, não mantiver um nível razoável de responsabilidade, o universo encontrar-se-á em auto-gestão.
Eu - Diz-se que Deus nos dá liberdade para escolher.
JC - Diz-se muita coisa... Qual foi a última vez em que influenciaste de forma verdadeiramente decisiva o teu destino?
Eu - Parecem-me ideias algo deprimentes...
JC - Mas não são. Gosto de me divertir e divirto-me, inclusive, a escrever poesia. Mesmo quando eventualmente não parece. A poesia é, em parte, a minha maneira de fazer palavras cruzadas.
Eu - Não tens receio de que um dia leias o que disseste e venhas a achar que não sabias exactamente do que estavas a falar?
JC - Não tenho receio de nada. Tudo corresponde a um momento. A maior espiritualidade que pode existir é vivermos de acordo connosco mesmos em cada momento. Isso e não termos dores de cabeça, não estarmos enjoados, não termos que perder a calma, podermos beber uns copos e falar de coisas sérias e de disparates com quem nos ouça de livre vontade, tudo ao mesmo tempo. O resto é conversa.



Declarações recolhidas em 12 de Novembro de 2005. Foto do Eu.

sexta-feira, novembro 11, 2005

Fog gone cold

Este poema, escrevi-o durante a minha passagem por Londres. É diferente em tudo do que actualmente escrevo e não deve ser encarado como um soneto de Shakespeare. Trata-se meramente de uma experiência. Mas achei que seria interessante publicá-lo.
I wrote this poem during the time I spent in London. It is absolutely different from anything I may now write and must not be looked upon as some sonet by Shakespeare. It is merely an experiment. But I thought it could be interesting to publish it.



The chilling winds in Avalon
Where greyness reigns from dusk till dawn
Conceal the night where vagabonds lurk
Beneath London's shadows and dreams at work

I dream the dream of Stonehenge's stones
Where magic's dust meets lover's bones
And ask thee now, ye faeries of old
Where true men lay and life gone cold

From mockingbirds I hear no sound
Apart from whines on sacred ground
Turned wasted land by fate, no faith

The time is all ours now to wait
While men-machines dictate the law
For ages new of nakedness raw.



Imagem de www.nyu.edu (tela de Claude Monet).

Poema de Joaquim Camarinha

segunda-feira, novembro 07, 2005

Naturália


I



Na minha rua temporária
(pleonasmo maior pois todas as ruas são temporárias)
Há um cão temporário,
Pequeno, quieto e amarelado,
Que nunca corre e nunca ladra
E que naturalmente me daria os bons dias
Se ao menos falasse ou ladrasse...
Nem ladra nem morde nem corre nem olha de soslaio
E deve ser uma alma velha canina...
Tenho sempre vontade de lhe sorrir
E acho que Buda, caso o encontrasse,
Lhe sorriria mais do que eu.



II



No meio da estrada estava uma pomba morta,
As asas abertas moviam-se-lhe com o passar dos automóveis...
Sobre a pomba pairava um céu sem nuvens
E no céu outras pombas voavam nas suas vidas,
Indiferentes à estrada e ao movimento, nas suas vidas,
Na plena comunhão do universo indiferente interligado.
No meio da estrada estava uma pomba morta
E a morte era nela serenidade plena,
Silêncio meditativo dos ascetas,
Indiferença fluida dos mármores brancos
Onde todas as palavras se calaram
Como os feixes de fotões no universo mais fundo.



III



Não quero pensar nem pensar em pensar
E lastimo ter que usar palavras para o dizer...
Porque as palavras são naturalmente cheias
E nelas não há nirvanas nem satoris
Mas somente o inferno do desassossego
Das palavras que se movem por ordem da natureza.
À noite, no deserto, todos os animais se silenciam,
A serpente, o escorpião, a aranha, o coiote, o mocho,
Silenciam-se mesmo os que piam, uivam e arranham,
Todos os solitários naturais sobre as dunas azuladas.
O próprio vento se silencia enfim
Para que se não escute sequer a voz de Deus...

Poema de Joaquim Camarinha

sábado, novembro 05, 2005

Tudo tão lento...



Todo o céu se move lentamente
Sobre as nuvens lentas
Sobre as marés lentas,
A geologia, a flora, a fauna...
Cordilheiras inteiras crescem e desaparecem
Como que por magia, mas o que é magia?
Vemos flores a desabrochar em câmara rápida,
Furacões a irromper em câmara lenta...
É feérico e monótono.
E o universo surpreende-nos
Sempre que o ultrapassamos na sua lentidão.



Imagem de www.artareas.com (tela de Jeremy Fraser).

Poema de Joaquim Camarinha

terça-feira, novembro 01, 2005

No sono da vida


Numa primeira versão, este texto era mais violento. Censurei-me, no entanto, porque o choque fácil e a ausência de contenção são a arma principal e a fraqueza maior dos artistas desinspirados. Prefiro oferecer-vos um Joaquim Camarinha sem fogos de artifício...



Gostas assim...
De quê precisamente?
Chupeta, biberão, roca, ursinho...
Gostas e fazes.
Nada deves a ninguém.
Sugando corações, pilhando almas!
Aproveita o tempo que te é dado
Porque não há recompensas, nem castigos, nem lições para aprender...
Tudo é totalmente vago.
Abraça, aperta bem quem amas
Como a piton abraça quem devora!
Depois, revitaliza-te,
Olhos cerrados, pálpebras brancas
Contra a alvura opiácea do linho fresco,
Inutilmente esperando que monstro algum te venha capturar durante o sono.



Imagem de http://home.eclipse.net (tela de Fuseli).

Poema de Joaquim Camarinha

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